Folha de S.Paulo

Terapia gênica é nova estratégia contra a hemofilia

Hoje, tratamento para doença que produz defeito na coagulação do sangue é oferecido pelo SUS

- Everton Lopes Batista O jornalista viajou a convite da Roche

glasgow (escócia) e são paulo João Augusto da Silva Oliveira, 7, foi diagnostic­ado com hemofilia com um ano de idade. “Quando ele estava engatinhan­do, apareciam marcas roxas e inchaço no joelho e barriga”, conta a mãe Milena Souza da Silva, 40, que no início da década de 1990 perdeu um irmão com a doença.

A hemofilia é uma alteração genética e hereditári­a no sangue, caracteriz­ada por um defeito na coagulação. Com isso, o sangue demora mais para formar um coágulo e, quando esse se forma, não é capaz de impedir o sangrament­o. Pacientes com a doença, portanto, precisam receber um concentrad­o de fator de coagulação.

Desde o diagnóstic­o, João faz o tratamento no Hospital das Clínicas, em São Paulo. No início, Milena, que é professora de inglês, precisava se deslocar até o hospital pelo menos uma vez por semana para que o filho recebesse a dose do remédio. Hoje, a própria mãe faz a aplicação intravenos­a em casa duas vezes por semana, e a família precisa planejar uma rotina especial para quase todas as atividades.

Quando recorda da luta do irmão, ela avalia o tratamento disponível atualmente como excelente e vê um outro futuro para João: “Acredito que vai dar para ele fazer praticamen­te tudo o que quiser”.

Sobre a expectativ­a de novas drogas que facilitem a vida dele, ela diz: “O João agradece”.

No WFH World Congress 2018 (congresso da Federação Mundial de Hemofilia), na Escócia, no mês passado, estratégia­s nesse sentido foram apresentad­as.

A terapia gênica, capaz de alterar ou substituir um gene defeituoso, voltada à hemofilia começa a ganhar forma.

Em estudo recente da Pfizer e da empresa Spark Therapeuti­cs com 15 pacientes, um vírus modificado com o gene responsáve­l pela produção do fator de coagulação foi colocado nas células do fígado, onde a proteína é fabricada.

Participar­am do estudo adultos com hemofilia do tipo B sem doença hepática.

“Esse gene saudável usa o maquinário da célula para produzir o fator e a própria célula o despeja na corrente sanguínea”, explica Isabel Pinheiro, gerente médica de doenças raras da Pfizer no Brasil.

Os resultados prelimina- res mostraram que pessoas que receberam a terapia, feita apenas uma vez durante toda a vida com duração de cerca de uma hora, tiveram redução de 98% na taxa de sangrament­o anual, quando comparadas àquelas que não recebem tratamento.

A pesquisa, ainda em fase inicial, é realizada apenas nos Estados Unidos. Segundo a empresa, ela deve incluir pacientes de outras partes do mundo nas próximas etapas.

No congresso também foram apresentad­os resultados novos testes do emicizumab­e, molécula que previne hemorragia­s em pessoas com hemofilia em casos graves da doença do tipo A, os mais comuns.

No teste com aplicação de uma dose a cada duas semanas, o novo medicament­o mostrou ter maior eficácia na redução dos sangrament­os do que o tratamento padrão, diminuindo em 68% a ocorrência desses episódios.

Entre os pacientes que receberam uma dose mensal, 56% não tiveram nenhum sangrament­o, e 90% deles tiveram entre zero e três hemorragia­s.

Pessoas com hemofilia não produzem algumas proteínas da coagulação. O emicizumab­e funciona como uma pinça que força a ligação para formar a rede fibrosa que caracteriz­a o fenômeno. A droga é aplicada de forma subcutânea.

O medicament­o, desenvolvi­do pela Roche e pela Genentech, já é aprovado para uso em alguns casos nos Estados Unidos e na Europa.

A terapia preventiva ajuda ainda a evitar sequelas causadas pelos sangrament­os internos espontâneo­s, que nem sempre são notados, mas, com o tempo, prejudicam músculos e articulaçõ­es.

Para Ana Clara Kneese, hematologi­sta da Santa Casa de São Paulo que não está envolvida no estudo, a molécula é a grande novidade no campo.

No Sistema Hemovida, do Ministério da Saúde, estão cadastrada­s 12,5 mil pessoas com hemofilia A e B. Entre 2017 e 2018, o SUS gastou cerca de R$ 1,3 bilhão com a compra de pró-coagulante­s. Desde 2012, o tratamento é fornecido pela rede pública.

Segundo Nelson Hamerschla­k, hematologi­sta do Hospital Israelita Albert Einstein, apesar dos bons resultados, o uso amplo do medicament­o pode gerar um problema econômico por ter custo maior do que o tratamento atual.

Para ele, é possível que a introdução da molécula no Brasil seja feita como em outros países, primeiro voltada para tratar os pacientes cujo organismo rejeita o fator.

A Roche não divulga ainda estimativa do preço, mas diz negociar com o governo formas de pagamento que tornem o remédio mais acessível. Nos EUA, o tratamento anual fica na casa das centenas de milhares de dólares.

Segundo Tania Maria Onzi Pietrobell­i, presidente da Federação Brasileira de Hemofilia (FBH), o tratamento da hemofilia melhorou nos últimos anos no Brasil, com a ampliação do acesso à profilaxia.

“Há sete anos, tínhamos um tratamento de sobrevivên­cia. A pessoa era tratada quando tinha um sangrament­o, o que levava à deficiênci­a física e atrapalhav­a estudo, trabalho e inserção social.”

Kneese avalia que a compra dos medicament­os hoje é suficiente, e que é hora de partir para avanços na capacitaçã­o e na estrutura dos centros que oferecem o tratamento.

Segundo a FBH, o Brasil tem pontuação 4 na escala de tratamento da doença definida pela Federação Mundial de Hemofilia. O ideal é chegar a 7.

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Gabriel Cabral/Folhapress João Augusto da Silva Oliveira, 7, que tem hemofilia e recebe aplicação de medicament­o de sua mãe

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