Canadense Seth mescla ficção e autobiografia em graphic novel
‘A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar’ narra sua busca por cartunista inventado
Caso você tenha alguma informação sobre o cartunista Jack ‘Kalo’ Kalloway, entre em contato com o quadrinista canadense Seth.
Especialista em tiras e charges da primeira metade do século 20 e apaixonado pelos cartuns da revista New Yorker, Seth só tem registro de uma contribuição de Kalo para a publicação, feita logo após o fim da Segunda Guerra. Ele ainda sabe de mais uma ou outra obra em revistas de menor prestígio —e nada mais.
A busca de Seth por Kalo é o foco de “A Vida é Boa, Se Você Não Fraquejar”, HQ publicada originalmente em 1996 e número 52 da lista de 100 Melhores Quadrinhos do Século 20 da revista The Comics Journal.
Apesar de aclamada como uma das grandes HQs autobiográficas da década de 1990, “A Vida é Boa” mistura realidade e ficção. Seth sustenta a fidelidade de sua jornada a eventos reais, mas Kalo é fruto de sua imaginação. “Os trechos pessoais, em sua maior parte, são precisos”, esclarece Seth em entrevista à Folha.
Hoje aos 55 anos, com vários prêmios da indústria de quadrinhos e colaborador de jornais como The Washington Post e The New York Times e da própria revista New Yorker, o artista diz não considerar o enredo de sua obra uma farsa, mas uma estratégia para que o público se importe mais com sua criação.
“Eu me utilizei como personagem principal por saber que o leitor se relacionaria mais com a história se a aceitasse como uma verdade”, diz.
As 192 páginas em preto e azul esverdeado da obra foram publicadas em capítulos na revista pessoal de Seth, ‘Palookaville’, de 1993 a 1996.
A coletânea lançada após o fim da série rendeu-lhe dois troféus no prestigioso Prêmio Ignatz em 1997 (melhor artista e melhor graphic novel). O álbum também estabeleceu Seth como um dos principais quadrinistas da América do Norte em sua geração.
Seth diz considerar o livro um divisor de águas em relação ao tipo de trabalhos que queria fazer em sua carreira.
Segundo o autor, desde então seu foco se deslocou para “coisas intangíveis”, em vez de de “coisas que aconteceram”. “Precisava contar histórias sobre os aspectos mais sutis da vida. Memórias, pensamentos, sentimentos.”
Para expressar tudo isso, o quadrinista conta, no quadrinho, com participações de sua mãe, seu irmão, uma namorada e seu amigo e colega de profissão Chester Brown.
Brown é hoje um dos expoentes dos quadrinhos autobiográficos no mundo, famoso pela crueza com que expõe sua vida pessoal.
Em “Pagando por Sexo” (WMF Martins Fontes), por exemplo, narra suas experiências como cliente de garotas de programa.
Em “A Vida é Boa”, Seth e Brown aparecem mais novos, no início de suas carreiras. Eles intercalam idas ao cinema e conversas sobre relacionamentos e quadrinhos com as investigações sobre Kalo.
Seth conta que ele e Brown ainda hoje refletem sobre diferentes níveis de honestidade em quadrinhos autobiográficos e diz que jamais vai se expor como o amigo.
Ele, no entanto, pondera: “Às vezes acredito que alguns dos meus trabalhos de ficção são mais reveladores do que os autobiográficos”.
O único álbum de Seth publicado no Brasil antes de “A Vida é Boa, Se Você não Fraquejar” saiu em 2014.
“Wimbledon Green - O Maior Colecionador de Quadrinhos do Mundo” (A Bolha) é uma investigação sobre a lendária coleção de HQs do protagonista que dá título ao álbum. Assim como na busca por Kalo, o foco do livro está em obsessões e colecionismo.
“Eu sou o que pode ser chamado de ‘colecionador em série’, coleciono alguma coisa por um tempo, me canso e passo a colecionar outra.”
Obcecado pela estética dos anos 1920 e 1930 e por quadrinhos da mesma época, Seth faz questão de distinguir seus gostos e hábitos de colecionismo do consumismo típico da cultura pop mainstream, tão associado aos quadrinhos de super-heróis.
“A maioria das coleções de hoje não tem nada a ver com a busca por objetos de apelo estético difíceis de encontrar ou com a pesquisa por informações culturais obscuras. Trata-se apenas de comprar um monte de itens de cultura pop de marca.”
A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar
Seth. Trad. Dandara Palankof. Ed. Mino. R$ 64, 90, 192 págs. POESIA Trio Pagão ***** Sérgio Medeiros. Ed. Iluminuras. R$ 49, 216 págs. Guilherme Gontijo Flores Professor de língua e literatura latinas na UFPR e tradutor “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”, célebre verso de Mário de Andrade, pode se aplicar a todo poeta que siga a sina de outrar-se na língua, assumindo uma multiplicidade das visões do mundo. “Trio Pagão”, de Sérgio Medeiros, é uma realização intensa dessa poética das alteridades, sem cair no sentimentalismo ou na culpabilização simplória.
Dividido em três poemas longos, o livro pode também ser lido como três transformações em que o poeta funde e se desdobra em outras figuras humanas, literárias, animais, vegetais e minerais.
Assim lemos: “Observo o caráter humano das plantas…”, “Observo o caráter humano das formigas…”, “Observo o caráter humano dos grãos de areia…”, “Observo o caráter humano desta rocha…”, num ato que é também o de transformação de si e do que é outro.
Em “Esculturas de Caligrafias”, Medeiros performa um trabalho delicado de caligrafia sem palavras. A partir de uma folha de papel dada pelo índio xavante Jerônimo Tsawé, realiza totens visuais enquanto grafa e rasura nomes importantes para o poeta, tais como Vicuña, Klein e Tunga.
É a mão desdobrada de Jerônimo que escreve pelo corpo de Medeiros uma não escrita simultaneamente indígena e vanguardista, numa transformação que nunca termina.
A homenagem é aqui tornar-se aquilo que não é, escrever a rasura, seguir na falta de semântica, numa recusa da identidade perfeita —o que se sugere é a partilha da assinatura Sérgio-Jerônimo.
A série de “Enrique Flor, o Novo”, talvez a mais tocante do livro, narra um Bloomsday (16 de junho, dia em que se passa o “Ulysses” de James Joyce) na Irlanda, em que o poeta está com a mulher e o filho, fantasiado do dúplice personagem Henry Flower/Enrique Flor, alter ego de Leopold Bloom, protagonista do romance joyciano, um personagem capaz de fazer música para o acasalamento das plantas.
Ao mesmo tempo, no grande incêndio florestal que assolou Portugal em 2017, morre uma criança de quatro anos chamada Enrique Flor. A série é então um dia na vida, uma metamorfose literária, um desdobramento da morte infantil, uma reflexão sobre a crise ecológica que assola o planeta. Temos num só texto a elegia da perda do mundo e a proposição ética por um novo mundo, povoado de afetos.
No último poema, “[O] Rio Perdido”, vemos monólogos com pontos de vista diferentes acerca de um rio que desaparece e um espaço praieiro afastado. No primeiro, a ausência de humanos é o que mais humaniza; no segundo é sua presença que se desdobra em animalidades, vegetalidades, mineralidades.
O rio perdido é um rio específico e é todo rio que se perde no espaço contemporâneo.
Nas últimas décadas, Sérgio Medeiros vem seguindo uma trajetória marcada pelo constante experimentalismo formal e por uma delicadeza ética cada vez mais profunda.
É precisamente isso que encontrarmos em “Trio Pagão”, já indicado em epígrafes, tais como “Deixe a natureza ver”, falsamente atribuída a Yves Klein; ou “Antes de ser contaminado el río desea ser escuchado”, de Cecilia Vicuña.
Aqui, quem fala é o rio, quem vê é a natureza, quem faz é um personagem e um menino morto: o poeta medeia porque se transforma.
ENSAIO Tolos, Fraudes e Militantes – Pensadores da Nova Esquerda * **** Roger Scruton, Ed. Record, R$ 54,90, 406 págs.
Pablo Ortellado Com “Tolos, Fraudes e Militantes”, de Roger Scruton, a Record dá sequência ao esforço editorial de publicar os autores da direita intelectual.
O livro é uma atualização de outro, “Pensadores da Nova Esquerda” (1985), que buscava, por meio de uma crítica generalizante, polemizar com autores daquela corrente.
Na nova versão, publicada na Inglaterra em 2015, saem autores como R.D. Laing e Rudolf Bahro, que perderam centralidade no debate, e entram outros, hoje mais proeminentes, como Foucault, Deleuze, Badiou e Zizek.
O livro não deve ser visto como uma crítica séria do legado intelectual dos pensadores de esquerda, mas como uma espécie de panfleto polemista movido por diferenças políticas e por muito ressentimento do status outorgado pelo establishment cultural e acadêmico à produção intelectual progressista.
Para um leitor que conheça a obra de alguns dos autores analisados, a leitura do livro de Scruton provoca irritação e espanto, já que é repleto de generalizações grosseiras e erros conceituais básicos.
Por um lado, não seria correto esperar que um livro tão abrangente, que busca analisar a obra de Hobsbawn, Thompson, Galbraith, Dworkin, Sartre, Foucault, Lukács, Adorno, Habermas, Althusser, Lacan, Deleuze e Guattari, Gramsci, Raymond Williams, Perry Anderson, Richard Rorty, Edward Said, Alain Badiou e Zizek em 400 páginas, pudesse, de algum modo, fazer justiça a todos os autores.
Mas seria de esperar que Scruton pudesse compreender as questões centrais e conceitos fundamentais de ao menos alguns desses pensadores, ainda que apenas nas obras mais conhecidas, e que pudesse apresentá-las de maneira breve e correta, antes de se aventurar em uma crítica generalizante. Se o leitor espera aprender algo sobre qualquer desses autores, ainda que para criticá-los, deve procurar auxílio em outro lado.
O esforço de Scruton é reduzir toda essa produção intelectual, multifacetada e politicamente diversa, a um mesmo projeto político anticapitalista e autoritário. O que todos esses autores buscariam é, por meio de uma crítica à ideologia, promover um Estado ditatorial que esmague as instituições da sociedade civil e substituir a competição e as assimetrias naturais do livre mercado por uma totalitária ideia de justiça social.
O leitor informado custa a crer que ele realmente tenha lido esses autores, já que ignora o conceito de esfera pública e o papel da sociedade civil na obra de Habermas, deixa de lado o papel central da autodeterminação no processo histórico de constituição da classe na obra mais conhecida de E. P. Thompson e afirma que a obra de Foucault é uma “tentativa de conseguir ordem social sem dominação”.
Os erros de compreensão são tantos e tão grosseiros que é difícil escolher os mais gritantes.