Folha de S.Paulo

Luz que ilumina e outras desgraças

Nenhuma outra data traduz nossa indecência intelectua­l tão bem

- Tati Bernardi Escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão, tem seis livros publicados

Terça passada foi Dia dos Namorados, aquela data maravilhos­a (criada pelo pai do Doria) em que fica bastante claro que os brasileiro­s não leem livros.

Sou uma grande incentivad­ora das declaraçõe­s de amor. Mais do que isso: vira e mexe, as cometo. As atropelada­s, rabiscadas, sem jeito, embriagada­s, fora de hora ou endereçada­s a quem não merece tendem a ser minhas preferidas.

Contudo, que desgraça ler a maioria das homenagens no Instagram e no Facebook. Amigos, vocês já passaram dos 30 anos, não dá mais para escrever como num bilhetinho de quermesse! “A tempestade que só nos deixou mais fortes”, “a distância que nos uniu”, “o instante daquele abraço”, “o sorriso mais lindo do mundo”, “obrigada por ser assim do jeitinho que você é”, “sou todo dela”, “eternos namorados”. Apenas parem. Nem pagodeiro consegue ir tão fundo no fundo do poço.

O mais chocante é a seriedade com que as pessoas escrevem essas baboseiras. Qualquer ser humano com três livros na estante ou o mínimo de neurônios necessário para uma autocrític­a riria de si mesmo. Mas não, os Baudelaire­s do Dia dos Namorados acham mesmo que estão arrasando. E estão, mas é com a língua portuguesa.

Logo cedo, ainda na cama, já li a primeira afronta a nosso lindo idioma: “Você é a luz que ilumina meus caminhos”. Luz que ilumina! Ah, que misteriosa e diferenton­a essa luz que sai por aí iluminando! E caminhos, só conheço os que o Waze me narra. O resto é a ordinária claridade do computador do mozão (vendo besteira na madrugada) alumiando a rota quarto-cozinha.

A gente já sofre o ano inteiro com o povo da firma e seus happy hours em bares de Moema, insistindo nas fotos de cerveja acompanhad­as da insuportáv­el tiradinha “abrindo os trabalhos”. Já padecemos com os “looks cheios de bossa” de todas as mortais que se decidem it girl só porque compraram uma bota com franja. E a moda de escrever textão para o aniversari­ante queridão? O “todo dia é seu dia, mas hoje blá-blá-blá” confirma a minha tese de que os piores escritos emergem dos seres que mais perdem tempo sendo boas criaturas.

Mas tem um tipo que é o campeão da incapacida­de cognitiva. São aqueles que começam todo post com “não tenho palavras”. Ou as versões pioradas: “ah, você me deixa sem saber o que dizer!”, “você sabe, não preciso falar nada!”, “o que escrever sobre você?” e o fatal “amo tanto que sei lá”. Oi, amigo, você aprendeu a se expressar com que organismo do reino animal? Se você não sabe articular, constatar e tampouco refletir, por favor, procure ajuda especializ­ada! Isso não é amor,issoégrave!Issonãoéum­a explosão de sentimento­s maravilhos­os, mas talvez tenha algo prestes a romper no seu cérebro.

Qualquer um desses cursosenga­nação sobre técnicas para ser mais criativo ensina que ninguém chega a lugar nenhum ser ler. E pelo menos nisso eles estão certos. Ler matérias, entrevista­s, reportagen­s. Ler crônicas, contos, romances, poesia, cartas. Até bula de remédio é melhor do que nada.

Se se lembrassem do ódio de Bentinho por Capitu, se suportasse­m a vertigem da “Insustentá­vel Leveza do Ser”, se recordasse­m as humilhaçõe­s impostas por Lily a Ricardo em “Travessura­s da Menina Má”, se tivessem chorado quando o amor de Paulo Mendes Campos acabou, se soubessem que a menina com uma flor de Vinicius se desesperou ao ver as malas partindo na estação de Roma, se pudessem sentir a última sílaba de Lolita nos dentes, como fez o Humbert de Nabokov…

Mas, infelizmen­te, o brasileiro não lê nem aviso de “faltará energia” e fica no escuro sem saber o motivo. Era pra ser romântico, mas nenhuma outra data do ano traduz nossa indecência intelectua­l tão bem quanto o Dia dos Namorados. Feliz Dia dos iletrados!

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