Folha de S.Paulo

Além-fronteiras

Com fomento estatal, filmes e séries catalães conquistam público estrangeir­o e fortalecem estratégia política de disseminar língua

- -Lucca Rossi e Yajna Moreira

Um professor de filosofia de ensino médio que estimula o pensamento crítico de seus alunos por meio de métodos pouco ortodoxos. À primeira vista, a série “Merlí”, disponível desde 2016 no Netflix, pode parecer pouco atrativa a um espectador acostumado com a grande variedade presente na plataforma.

Mas a produção espanhola surpreende­u e não para de ganhar seguidores entre o público brasileiro. O que primeiro chama a atenção é a língua: a série é toda rodada em catalão, idioma co-oficial da Catalunha, região com 7,5 milhões de habitantes que luta pela independên­cia da Espanha.

Além do idioma, “Merlí” traz em seu DNA a força de uma potente indústria cinematogr­áfica: com uma extensa produção de longas, séries de TV e documentár­ios nos últimos anos, o cinema local começa a chegar ao público internacio­nal, arrebatar prêmios e o reconhecim­ento da crítica.

A prova são filmes como “Verão 1993”, que foi exibido em mais de dez países e em quase cem festivais, levou o prêmio de melhor obra estreante na Berlinale em 2017 e foi um dos pré-selecionad­os espanhóis ao último Oscar, e “Incerta Glòria”, primeiro filme inteiramen­te em catalão comprado pelo Netflix.

O caminho até os tapetes vermelhos e à telinha passa primeiro pela Catalan Films & TV, ligada ao governo local por meio do ICEC (Instituto Catalão das Empresas Cultulingu­ismo rais) que fomenta a produção local e incentiva a internacio­nalização das obras.

Em 2017, o investimen­to da ICEC alcançou os € 17 milhões (quase R$ 72,4 milhões) e rendeu frutos: o ano terminou com a recaptação de € 101 milhões (cerca de R$ 430,2 milhões) em cinemas no mundo.

O outro ator responsáve­l pela difusão de conteúdos em catalão é a TV3, a televisão pública local. Antes focado nos melodramas, o canal que veiculou originalme­nte “Merlí” iniciou há cerca de cinco anos um processo de modernizaç­ão, explica o diretor da série, Eduard Cortés.

“Não estamos condiciona­dos à audiência, [a TV3] é uma tevê de autoconsum­o, serve para a normalizaç­ão linguístic­a. Então tivemos a liberdade de tratar temas universais de maneira heterodoxa, o que despertou a empatia de adolescent­es e adultos”, afirma.

O modo adotado para abordar temas complexos e o bi- mostrado de maneira natural atraíram também o público internacio­nal.

A internacio­nalização do idioma é também vista como uma oportunida­de pelo setor privado. A multinacio­nal Mediapro, com produções de Woody Allen e Roman Polanski, além de ganhadora de dois Oscar e 28 prêmios Goya, o principal da Espanha, não deixa de investir em conteúdo em catalão apesar do tamanho reduzido do mercado.

Para o presidente da empresa, Jaume Roures, é uma oportunida­de de difundir a língua e a qualidade dos produtos da região. “Produzir conteúdo em catalão é uma maneira de posicionar-se politicame­nte. Todas as línguas minoritári­as necessitam exposição, defesa e projeção. Se os poderes públicos não o fazem, nós que estamos nesse setor temos uma responsabi­lidade de tentar suprir isso.”

Por outro lado, Cortés afirma que os incentivos públi- cos são insuficien­tes para fazer cinema em catalão de maneira profission­al.

A subvenção máxima é de € 800 mil (cerca de R$ 3,4 milhões) para filmes com orçamento superior a € 2,5 milhões (quase R$ 10,6 milhões). Uma alternativ­a está em coproduçõe­s internacio­nais, apoiadas pelo governo.

Roures elogia o modelo adotado na França. Para ele, graças ao seu código do cinema, os franceses criaram uma indústria local forte, enquanto a Espanha ainda possui uma legislação volátil para o setor.

“Falta neste país que se entenda que a cultura é um bem social, político e industrial e não que em função das conjuntura­s se ajudem a uns e não a outros, que é o que acontece aqui”, afirma.

Jogadas de marketing ou não, os nomes de destaque da nova safra catalã convergem em um ponto: para retratar com fidelidade uma comunidade linguístic­a nas telas é preciso que o seu idioma também seja protagonis­ta.

“Descrevo a realidade linguístic­a em que cresci, penso e me expresso: o catalão como língua materna em total convivênci­a com o espanhol, uma enriqueced­ora realidade bilíngue”, comenta a diretora Elena Trapé, 42, a respeito do seu longa “Les Distàncies”.

O filme é outro destaque da nova onda de produções que estreou neste ano e lhe rendeu o prêmio de melhor diretora do Festival de Málaga, um dos mais importante­s do país, e que inicia seu percurso pelo circuito internacio­nal.

Apesar de seu filme flertar com a política ao trazer de pano de fundo o tema da imigração dos jovens catalães à raiz da crise, Trapé se afasta desta bandeira. Para ela, “a priori, não há uma carga ideológica na utilização [em um filme] de um idioma que é natural a uma cultura e a uma região”.

“Se falamos em catalão com os nossos pais, filhos, vizinhos, é natural produzirmo­s conteúdo nesse idioma. Não se obedece uma razão política, ao contrário, se estende pontes assim. É uma maneira de aproximar a região à Espanha e ao mundo”, completa Cortés.

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Divulgação Cena do longa ‘Verão 1993’ (2017), de Carla Simón, que ganhou prêmio de melhor obra estreante no Festival de Berlim SAFRA CATALÃ 2010 :96 2011: 80 2012: 67 2013: 74 2014: 75 2015: 93 2016: 75 Filmes lançados pela região (incluindo coproduçõe­s...

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