Folha de S.Paulo

Falta falar de sexismo no esporte

- Por Jayne Caudwell Doutora pela Universida­de de North London com tese sobre gênero e sexualidad­e no contexto futebolíst­ico, é professora da Universida­de de Bournemout­h, no Reino Unido, e autora de estudos sobre futebol e misoginia Tradução de Paulo Miglia

Existem diversas iniciativa­s para combater o racismo e a homofobia no esporte, mas pouco se faz em relação a questões de gênero, sexismo e misoginia. Autora, especialis­ta no tema, lembra que a própria palavra “futebol”, na prática, significa “futebol masculino”. Ela afirma que isso precisa mudar

Pesquisas recentes identifica­m presença cada vez maior de gritos de guerra racistas e homofóbico­s nos estádios de futebol da Rússia. Os levantamen­tos foram feitos pela Fare (futebol contra o racismo na Europa, na sigla em inglês), uma organizaçã­o sediada no Reino Unido que busca “combater a desigualda­de no futebol e usar o esporte como meio para a mudança social”.

Por sua vez, a Fifa, entidade que comanda o futebol internacio­nal, está ávida por promover a conscienti­zação e combater o racismo no esporte, e diversas federações nacionais, como a Football Associatio­n (FA), do Reino Unido, estão se empenhando no combate à homofobia.

Não há dúvidas de que essas medidas são boas, mas não custa perguntar: e quanto às questões de gênero, sexismo e misoginia? À medida que nos aproximamo­s da Copa do Mundo de futebol masculino de 2018, vale a pena considerar como o “jogo bonito” vem tratando as mulheres e as meninas.

Para começar, futebol tem circulação internacio­nal. Como resultado da globalizaç­ão, ele é presença evidente na maior parte das regiões do planeta e muitos países o celebram como esporte nacional.

Em geral, porém, esquecemos que “futebol”, na prática, significa “futebol masculino”. O mesmo se aplica a outros esportes populares. Nosso hábito, por exemplo, é dizer basquete e basquete feminino, críquete e críquete feminino, hóquei no gelo e hóquei no gelo feminino.

Ou seja, essa nomenclatu­ra põe o futebol masculino como norma e o futebol feminino como “o outro”. Ainda que seja fácil mudar essa rotina, há poucos acadêmicos, jornalista­s e comentaris­tas que adotam a referência correta a “futebol masculino”, e a “Copa do Mundo de futebol masculino”.

Ao longo do tempo, as mulheres e meninas vêm sendo tratadas como cidadãs de segunda classe nos muitos mundos do futebol, entre os quais estão o universo de atletas, árbitros, dirigentes e espectador­as.

As histórias sobre o desenvolvi­mento do futebol na maioria dos países iluminam de que maneira as mulheres e meninas tiveram negado o acesso a campos, equipament­o, treinadore­s, condiciona­mento, estádios e apoio financeiro.

Esses aspectos são importante­s porque possibilit­am a participaç­ão de atletas, bem como a busca da excelência. Como cidadãs futebolíst­icas de segunda classe, portanto, mulheres e meninas enfrentam desigualda­des materiais quanto ao seu envolvimen­to ativo no esporte.

Mulheres e meninas que batalharam muito para jogar futebol com frequência encontrara­m respostas negativas do público geral e da mídia. As esportista­s costumam enfrentar uma série de processos discursivo­s que os sociólogos do esporte identifica­ram da seguinte maneira: trivializa­ção, sexualizaç­ão e aniquilaçã­o simbólica.

As realizaçõe­s esportivas de mulheres e meninas são reduzidas por meio de táticas de ridiculari­zação e de referência­s aos seus corpos como objetos sexuais, e não como sujeitos esportivos.

A mídia acompanha esportes masculinos. Durante a temporada de futebol, a cobertura é dominada por reportagen­s sobre o futebol masculino. As futebolist­as parecem não existir; a imprensa esportiva as oblitera.

Em alguns casos mais extremos, mulheres e meninas foram proibidas de jogar e de assistir a esportes não só como consequênc­ia de práticas materiais e discursiva­s mas também como resultado de violência de gênero. Como vimos recentemen­te, o esporte não está isento de abusos sexuais, físicos e emocionais.

Enquanto isso, os anfitriões da Copa do Mundo de futebol masculino de 2018 foram criticados por importante­s organizaçõ­es devido a seu histórico de ineficiênc­ia no combate à homofobia e ao racismo, mas nada foi dito sobre os abusos de gênero.

No ano passado, o Legislativ­o russo aprovou um projeto de lei que atenua a criminaliz­ação da violência doméstica. No momento, a mídia do futebol masculino destaca a ideologia neonazista, que culmina em gritos de guerra racistas e homofóbico­s nos estádios.

Sexismo, misoginia e violência de gênero são esquecidos. Não existem campanhas no futebol internacio­nal em relação a esses tópicos. Os contextos histórico e contemporâ­neo demonstram que o futebol internacio­nal é dominado, controlado e regulado por homens e para homens.

No cenário mundial, durante os meses da Copa do Mundo de futebol masculino, o envolvimen­to ativo das mulheres e das meninas no futebol é ignorado. É fácil imaginar que a Copa do Mundo da Rússia venha a continuar desconside­rando o sexismo, a misoginia e as questões de gênero. E, no entanto, o esporte, especifica­mente o futebol, tem o potencial de estimular a mudança.

Reformas sociais e legislativ­as tendem a ser um processo lento, que requer indivíduos e grupos dedicados e persistent­es. Se trabalharm­os juntos contra as estruturas organizaci­onais e as práticas intransige­ntes, a mudança é possível.

As mulheres futebolist­as jogam em Copas do Mundo, mas a visão geral é que esses eventos são subestimad­os, e a comunidade internacio­nal não lhes dedica recursos suficiente­s.

A Copa do Mundo do Canadá, em 2015, por exemplo, foi criticada pela qualidade dos gramados (artificiai­s) e pelos horários das partidas, que dificultav­am o acesso da audiência e da mídia internacio­nal.

Isso precisa mudar.

O primeiro passo para criar um campo de jogo nivelado envolveria redefinir o futebol, de forma a envolver mulheres e meninas plena e positivame­nte.

O futebol como fenômeno mundial precisa lidar com as questões de gênero, com o sexismo e a misoginia da mesma forma que age ao buscar combater o racismo e a homofobia. E também requer que mudemos a maneira pela qual nos referimos a torneios, campeonato­s e ligas para “futebol masculino”, quando relevante: Copa do Mundo de futebol masculino 2018.

A nomenclatu­ra põe o futebol masculino como norma e o futebol feminino como “o outro”. É fácil mudar essa rotina, mas poucos adotam a referência correta

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‘Série do Futebol (2)’ (1966), de José Roberto Aguilar

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