Folha de S.Paulo

Ônibus provoca medo 2 anos após tragédia na Mogi-Bertioga

Estudantes de São Sebastião dizem que nada mudou no transporte pago pela prefeitura; empresa nega problemas

- -Marina Estarque

Dois anos foram suficiente­s para Jario plantar e ver florescer, mais de uma vez, azaleias, hortênsias, gardênias e margaridas no túmulo de seu filho, Guilherme de Oliveira. Mas não para ver alguém ser responsabi­lizado pelo acidente que matou o jovem, assim como outras 17 pessoas em 8 de junho de 2016, quando um ônibus com estudantes tombou na Mogi-Bertioga.

O esmero com o jardim, explica Jario, é uma forma de seguir cuidando do filho. Ele e a esposa vão toda semana ao cemitério, a duas horas da sua casa, em São Sebastião (SP). Além das flores, o tempo fez crescer a raiva do pai. “Cada dia dói mais, é revoltante”, diz o zelador Jario de Oliveira, 45.

Em 2016, o resultado da perícia apontou falha nos freios e falta de manutenção. O ônibus, da União do Litoral, era fretado pela Prefeitura de São Sebastião para fazer o trajeto da cidade do litoral norte até a Universida­de de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo.

A dona da empresa, Daniela de Carvalho Soares Figueiredo, e os funcionári­os Adriano André do Vale e Fernando Antônio Resende são acusados “de matar culposamen­te, agindo com negligênci­a, 18 pessoas e ferir outras 12”, segundo o Tribunal de Justiça de SP. O motorista morreu no acidente.

Para o promotor de Bertioga, Diogo Pacini, não há lentidão no processo, que está em fase de oitivas de testemunha­s. “O feito é bastante complexo e são muitas pessoas a serem ouvidas”, afirma.

Enquanto isso, Jario e sua esposa fazem tratamento psiquiátri­co e vivem “à base de remédios”. “Choramos dia e noite”, diz. A esposa está com depressão e quase não sai do quarto.

Primeiro da família a fazer faculdade, Guilherme tinha 19 anos e cursava design gráfico. Quando Jario via o ônibus da empresa, ficava orgulhoso. “Pensava: ‘meu filho está indo para a faculdade’. Hoje tenho raiva. Foi negligênci­a.”

Jario pediu uma indenizaçã­o na Justiça e, segundo ele, não recebeu nada até agora. Ainda que o processo seja doloroso, ele não pensa em desistir. “Dinheiro pra mim não importa, nasci pobre e vou morrer pobre. Mas, por Justiça, quero mexer no bolso deles”, diz.

Jario diz que a empresa nunca ligou para ele após o acidente. “E os ônibus continuam quebrando.” A falta de segurança dos veículos é apontada por muitos sobreviven­tes como motivo de frustração.

É o caso do estudante de engenharia Felipe Ferreira da Silva, 19, que passou 32 dias internado, dez em coma.

Recuperado, Felipe se mudou para Mogi para evitar pegar o ônibus todos os dias. Para os pais, uma doméstica e um pedreiro, os R$ 550 de aluguel pesam no bolso. Hoje Felipe usa o ônibus para visitar a família nos fins de semana.

“Ainda tem cinto com problema, os ônibus são os mesmos. Não vi nenhuma melhoria”, diz. Felipe aceitou um acordo com a empresa e vai receber R$ 21 mil, já descontada­s as taxas do advogado. “Foi um valor baixo, mas preferi colocar um ponto final nisso”.

Outro sobreviven­te, o estudante de engenharia Erick Pedralli, 23, também se mudou para Mogi, mas usa o fretado nos finais de semana. “Conti- nua quebrando, já fiquei parado na serra depois do acidente. Não mudou nada.”

Na época, Erick ficou 22 dias internado, alguns em coma, com edema cerebral. Seu pulmão foi perfurado, e uma orelha, costurada. Levou nove pontos no joelho e perdeu um dos dedos da mão direita.

“Fiquei meio doidinho. Tenho esquecimen­tos, falta de atenção, às vezes faço comentário­s fora de contexto. Eu mesmo noto: ‘que merda eu falei?’”.

Erick fica envergonha­do do que chama de “panes”. As marcas no corpo também incomodam o rapaz. “Costumava esconder a minha mão. Hoje não tenho mais vergonha”, disse, sem perceber que mantinha a mão coberta por um gorro.

Como Jario, Erick não recebeu indenizaçã­o. “Nem mesmo um telefonema”, diz ele, cuja mãe é cabeleirei­ra e o pai, caminhonei­ro. Erick paga o aluguel com o salário do estágio.

Outros sobreviven­tes trancaram a faculdade por pro-

blemas psicológic­os. É o caso da estudante de engenharia Gabriela Leite, 20, que perdeu amigos, além do namorado. Ela teve afundament­o do crânio, ficou em coma e passou por cirurgia no cérebro.

Recuperada, voltou para a universida­de, mas passou a ter crises de ansiedade e trancou o curso. A jovem não quis conversar com a reportagem. “Ela não fala do acidente. Ela se fechou”, lamenta o pai, Gilberto Bras, 47.

Segundo ele, Gabriela ficava nervosa com o trajeto de ônibus. Morar em Mogi também não resolveu. Ela tinha crises, às vezes semanais, e os pais precisavam buscá-la.

“Ela sente falta de ar, dor no peito e fica paralisada. Já fomos em vários psicólogos.”

Ele fez um acordo com a empresa. “Recebemos R$ 50 mil, mas já foi quase tudo no tratamento. Só aceitei para evitar mais desgaste para a Gabi”.

Em 2016, cinco familiares ou vítimas assinaram um TAC (termo de ajuste de conduta), feito entre a empresa e a Defensoria Pública do Estado de SP.

Para o advogado José Beraldo, que defende algumas das vítimas, o valor foi baixo, “um absurdo”. A defensoria afirma que os valores são confidenci­ais e seguem a jurisprudê­ncia.

Por meio de nota, a União do Litoral disse que se defende na Justiça “da alegação de falta de manutenção dos freios”.

Afirma que realizou, nos últimos anos, diversos acordos com as vítimas. “Não consta na empresa reclamaçõe­s de alunos a respeito das condições ou qualidade dos serviços”, afirmou, sobre os ônibus.

A empresa disse que, em 25 anos de operação, não se envolveu em outros acidentes com morte de passageiro­s e que investe em segurança. Procurada, a Prefeitura de São Sebastião não se manifestou.

Na sexta-feira (8), pais e amigos das vítimas inaugurara­m um memorial, em uma igreja. Jario, que organizou a homenagem, diz que a placa colocada em 2017, no local do acidente, foi roubada.

Assim como mantém o jardim no cemitério, Jario não descuidou. Mandou fazer uma placa nova, de acrílico: “Não pode ficar no esquecimen­to”.

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José Patrício - 9.jun.2016/Folhapress
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Fotos Adriano Vizoni/Folhapress
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Ônibus da União do Litoral logo após o acidente, em 2016; Erick Pedralli, sobreviven­te, e Jario de Oliveira, que perdeu o filho Guilherme no acidente
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