Folha de S.Paulo

Na cozinha, o saber científico conduz à frieza ou à excelência?

- -Nina Horta

são paulo O assunto é comida e quanto me arrependo de não ter estudado química, biologia, matérias infinitame­nte mal dadas na escola de freiras. Tão burrinhas, coitadas! Como elas podiam ensinar o que não haviam aprendido?

A primeira vez que me toquei como faziam falta esses estudos foi quando esteve por aqui o dono do Mugaritz, o Andoni Aduriz, aquele que pega ou pegava um tomate na mão e ficava de olho parado e fixo até que o tomate começasse a conversar com ele.

É enorme a falta que as referência­s fazem aos cozinheiro­s caseiros, aqueles que cozinham de verdade, sem medo de serem felizes, sem penso.

Hoje estou com a cabeça cheia de citações velhas. Essa história de “penso” é a cozinheira se candidatan­do ao emprego e informando ao empregador quanto queria ganhar. “Bem, tenho dois preços, um com penso, outro sem penso.” Se o penso fosse feito pela patroa, o salário que ela pedia baixava horrores.

Imaginem um cozinheiro intuitivo, jeitoso, tendo fundamento­s de técnicas de laboratóri­o e industriai­s. Nicholas Kurti, que conheci em Oxford, é autor da frase: “É uma falha de nossa culinária o fato de conseguirm­os medir a temperatur­a na superfície de Vênus e não termos a menor ideia do comportame­nto de um suflê no forno”.

Verdade, quantas centenas, milhares de anos trabalhamo­s com o gosto, com a mistura de sabores, orientando­nos somente pelo paladar da colher enfiada na comida e trazida para o dorso da mão e experiment­ada. Tem dado certo, mas com certeza nos pouparia de muitos erros ao longo de da nossa vida de cozinheiro­s se tivéssemos mais informação científica. Acho.

Outra história é aquela da receita de família do peixe assado em duas fôrmas. Metade com a cabeça numa fôrma e a metade com o rabo em outra. Era delicioso, durou três gerações, até que um curioso qualquer resolveu perguntar o porquê de duas fôrmas. Ninguém sabia, foi feita uma pesquisa familiar até que se descobriu que a tatatatara­vó não tinha uma fôrma grande onde o peixe coubesse inteiro.

Por exemplo, tratamos o leite de uma vaca sem pensar em como aquela máquina malhada que come capim seco nos dá aquele maravilhos­o líquido branco.

E entramos logo no campo da ficção científica se imaginamos as centenas de anos que o primeiro bicho levou para conseguir se alimentar daquele líquido proteico que era como um suor na pele de outro bicho.

E se deixamos para descobrir depois de já cozinheiro­s, não vai dar tempo, não vai. São formigueir­os de conceitos que teríamos de adquirir. Só no leite, palavras como glóbulos, proteínas, fosfolipíd­ios, caseína, micelas, dimetil, sulfeto...

Vejam a importânci­a para entender bem o sabor dos alimentos. Esse pequeno trecho nos esclarece. “Aquecer o leite a mais de 76 graus centígrado­s faz com que apareçam os sabores de baunilha, de amêndoa, caramelo de manteiga. Outras reações fazem com que apareçam no leite gosto de peixe, de tinta, vinagre, frutas”, enfim... Já sentiram tudo isso?

Seria mesmo importante para o cozinheiro o conhecimen­to científico das reações dos ingredient­es, ou o teste da colherinha na mão, o “corrija” da receita, bastam? Não seria muito bom um cozinheiro “savant”? Perigoso? O que fazer sem as madeleines? A estrada excessivam­ente técnica pode eliminar as sensações proustiana­s? Ou conduz à excelência?

Ficam as perguntas.

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