Mitos de criação do mundo mostram ligação com os incas
A ligação entre ashaninkas e incas é tão profunda que está registrada até nos mitos sobre a criação do mundo e do homem, como se os dois povos tivessem nascido um do outro.
A lenda é narrada por Moisés Piyãko, que em sua formação de xamã se dedica às tradições espirituais.
“Na história, os incas vieram logo depois de nós. Muito antigamente, havia uma comunidade ashaninka, e, no centro dela, havia uma lagoa, de onde eles ouviam o canto de um galo. Um dia, uma pessoa pegou um anzol para pescar. Cada isca que punha pescava alguma coisa, galinhas e outros bichos que não existiam.”
Numa dessas vezes em que ele colocou o anzol, pescou um inca. Por isso, primeiro os incas viveram com os ashaninkas. Mas um dia, segundo a lenda, eles se afastaram para morar mais longe, e aí surgiu o povo inca. Eles nunca foram inimigos dos ashaninkas e também nunca os dominaram como fizeram com outros povos. Eles sempre viveram de igual para igual, mantinham relações de troca.
“O que meu povo precisava, buscava nas cidades dos incas. E o que eles precisavam, compravam dos ashaninkas. Os incas não sabiam andar na floresta, não desciam para a floresta, ficavam só na montanha. Ouvi essa história do meu avô, quando eu era pequeno.”
Segundo Moisés, os ashaninkas buscavam dos incas ferramentas, tecidos e cestarias, além de certos alimentos que eles tinham nas cidades e que os ashaninkas não plantavam. Os incas se interessavam especialmente por penas de aves da floresta, para adornos.
Havia muitas diferenças de cultura entre eles, talvez a mais marcante fosse que os ashaninkas comiam carne de macaco, os incas não: “Eles só comiam coisas da montanha. E compravam peixes e pássaros da floresta, penas e couro de animais”.
O mesmo mito da criação narra também o surgimento dos não indígenas, que na língua deles se chamam wiracochas: “Depois que puxaram os incas, passou um tempo e o galo continuou cantando dentro do lago. Então o mesmo herói foi lá pescar de novo. Aí, quando ele puxou o anzol, veio um homem diferente, wiracocha. Eles ficaram com medo desse povo, que ninguém sabia quem era. Então pegaram um facão para cortá-lo. Mas de cada pedaço que cortavam nascia outro homem, que se multiplicava rapidamente, e eles ficaram com mais medo, desistiram de lutar e fugiram para longe daquele lugar, deixando os brancos por ali”.
Com a multiplicação desses estrangeiros, representada pela chegada dos espanhóis, que rapidamente dominaram o território do antigo império, Pawa, o deus supremo dos ashaninkas, guardou a sabedoria, transformando os sábios para que eles não contassem aos invasores os segredos de seus poderes.
“Até hoje ninguém entende como os incas faziam aquelas construções tão grandes. Eram poderes que eles tinham. Eles pensavam as coisas, desenhavam e, com os poderes, elas ficavam prontas. Também nós tínhamos poderes semelhantes: os tecidos, por exemplo, eram feitos com poderes, sem o trabalho que temos que ter hoje em dia. As pessoas desenhavam um tecido e ele ficava pronto. Depois, esses poderes foram recolhidos, tudo fechado. As pessoas que tinham poderes foram transformadas. Hoje, o mundo na floresta é todo encantado, formado de pessoas que tinham poderes e foram transformadas em pássaros, árvores e animais.”
“Nossa vida está conectada na floresta. Tem pássaro que fala frases inteiras em nossa língua. Quando nós fazemos nossas festas religiosas, reproduzimos músicas que os pássaros Segundo a narrativa ashaninka, Pawa escondeu a sabedoria ao transformar os sábios em animais. Mas precisava preservar a capacidade de alguns homens de acessar esses conhecimentos. Para isso criou então a ayahuasca, que põe os homens em contato com o mundo espiritual.
“Depois que Pawa transformou todas as pessoas que achou que era necessário, ele transformou horoa, a mulher, em uma folha, a chacrona; e o homem ele transformou em um cipó, que nós chamamos de kamarampi, e os incas chamavam de ayahuasca.”
“O casamento desse homem com essa mulher é a chave para a gente conseguir penetrar em todos os encantos que estão guardados. Pawa
deixou esse ensinamento de como seria possível decifrar os segredos. Com kamarampi você pode conversar com os pássaros e com os outros animais encantados, como nós estamos falando aqui. A bebida que tomamos nos rituais é a mistura do homem e da mulher. É a chave para acessar os ensinamentos.”
Os ashaninkas reivindicam a primazia do conhecimento da ayahuasca, hoje presente em diversas culturas indígenas do Acre. Moisés afirma que seu avô, Samuel, um grande líder histórico (pinkatsari) dos ashaninkas do Acre, ensinou os segredos da ayahuasca a Mestre Irineu, o seringueiro que fundou a religião do Santo Daime.
“A nossa história é muito grande, muito antiga. O uso da ayahuasca
como chave para decifrar os segredos guardados por Pawa já vem de muito tempo. Depois, de um século para cá, a população da Amazônia começou a tomar ayahuasca. Foi meu avô que serviu kamarampi pela primeira vez para o Mestre Irineu. E ele criou um rito, e depois vieram outros e criaram outros e outros. E isso nós não aceitamos, porque não há tantos mundos espirituais, tão diferentes. Só há um mundo espiritual, porque Pawa é único, não há tantos assim para escolher. Só há um, e você recebe, conforme seu merecimento, o que é bom ou ruim.”
Entre os ashaninkas, o consumo ritual de kamarampi é feito em grupos de até seis pessoas, em reuniões discretas, em torno de um xamã, como Moisés. A finalidade é ouvir o mundo espiritual, receber ensinamentos, entender situações. É um momento de concentração, por assim dizer.
Já as festas coletivas (chamadas piarentsi) reúnem toda a aldeia e convidados, que consomem caiçuma, uma bebida levemente fermentada, feita de mandioca ou batata.
Essas festas têm um papel muito importante na vida dos ashaninkas,
porque expressam alegria, gratidão e proximidade entre as pessoas da comunidade. Ao mesmo tempo, são “um termômetro para medir os ânimos dos deuses”, como explica a antropóloga Erika Mesquita, que estuda a visão dos ashaninkas sobre as mudanças climáticas: ao participar da festa com os índios, se o deus dono da chuva (Inkaniteri) fica bêbado, ele fará cair chuva forte; se não chove, é porque ele não se divertiu tanto. Mas se chove fraco depois de uma festa, é sinal de que os espíritos femininos ficaram alegres e bêbados.