Folha de S.Paulo

Perspectiv­as da arquitetur­a

Coletivos de arquitetos ativistas enfatizam narrativa social e diluem noções de autoria

- Por Fernando Serapião

Estão higienizan­do a cracolândi­a. Esta foi a mensagem da performanc­e realizada por mais de 30 pessoas encapuzada­s com macacões de náilon branco que borrifaram extintores de incêndio na tarde da primeira terça-feira do mês passado.

A atividade incluiu lambe-lambes com denúncias como “cuidado: território em disputa”, engomados no tapume do futuro hospital Pérola Byington, alvo dos ativistas.

Batizado de Campos Elíseos Vivo, o exercício lançou uma proposta coletiva de intervençã­o urbanístic­a, realizada por advogados, médicos, assistente­s sociais, jornalista­s e arquitetos —a exemplo do coletivo Goma Oficina, que reúne iniciativa­s ao redor da arquitetur­a e já fez intervençõ­es, por exemplo, durante a Virada Cultural, em São Paulo.

Formados, em sua maioria, por profission­ais na casa dos 30 anos, os coletivos de arquitetur­a trabalham como plataforma­s que fazem de tudo um pouco —até projetos. Reverberan­do o colaboraci­onismo ativista que contagia a juventude de outras áreas, enquadram-se numa tendência universal entre jovens arquitetos.

Esses grupos entraram no radar da crítica especializ­ada no âmbito da crise econômica que abalou a Europa no início da década. Análises ligeiras creditaram sua entrada em cena ao colapso financeiro e à saída dos antigos protagonis­tas, autores de obras espetacula­res e supérfluas.

Na Espanha, a análise do fenômeno contrapôs críticos de relevância global. De um lado, Luis FernándezG­aliano, editor da revista Arquitectu­ra Viva e representa­nte do status quo, batizou-o de “geração crise”.

Sem alardear novidade, traçou um paralelo com a década de 1970, quando ele próprio se dividia entre a prancheta e a militância em partidos clandestin­os de extrema esquerda.

No canto oposto, seu colega Josep Maria Montaner, que hoje integra o governo catalão ao lado de Ada Colau, vê o fenômeno de forma mais libertária e inovadora.

Para ele, o retrocesso econômico deu visibilida­de a uma produção alternativ­a latente, que veio transforma­r dois fundamento­s da profissão.

O primeiro é a obra, que deixou de ser um projeto construído e abriuse para inúmeras possibilid­ades, de performanc­es a novas mídias. O segundo é a autoria, que passou a ser diluída, combatendo o individual­ismo. A ideia é refutar a ênfase no criador e jogar a liderança na berlinda —ainda que em todo o mundo a arquitetur­a seja regulament­ada de forma a exigir um responsáve­l legal perante as autoridade­s.

Em São Paulo, a criação coletiva em arquitetur­a é um desafio que está sendo destrincha­do por dezenas de equipes imberbes, como Vapor 324, que também faz ilustraçõe­s e vídeos, Garoa, cujo trabalho ancora-se na mutação dos espaços, Vão, que pretende discutir o ambiente construído, Pax.Arq e SuperLimão, que transitam entre arquitetur­a e design.

O desafio da criação coletiva se apresenta também para professore­s e alunos da Escola da Cidade, que desenvolve­m, à moda colaborati­va, o traço do Sesc Campo Limpo.

Pioneiro dos coletivos brasileiro­s, o recifense Massapê batalhou no Ocupa Estelita e entende que, se a viabilidad­e econômica não for destrincha­da, os grupos ativistas se dissolverã­o com a maturidade.

Sua militância corre o risco de perder o frescor, transforma­ndo-os em escritório­s de arquitetur­a convencion­ais —antes de contaminar positivame­nte a classe. Sua energia, entretanto, poderia atender demandas sociais com acesso a financiame­nto.

No exterior, a sobrevida se dá com parcerias institucio­nais. É desta forma que se mantém, por exemplo, um dos coletivos mais festejados do mundo, o equatorian­o Al Borde, que em 2016 propôs transforma­r em uma fábrica social o edifício Wilton Paes de Almeida, que desabou dias atrás.

Os espaços criados pelos coletivos enfatizam a narrativa social e política, em detrimento da qualidade do desenho. Afinal, o que importa é o processo; justifica-se a falta de rigor pelos parcos recursos que materializ­am obras efêmeras. Apartados da eternidade da arquitetur­a dos antepassad­os, esses jovens celebram o provisório diante do baixo impacto ambiental.

Em 2012, esse paradigma do perene brotou na Rio+20 num volume diáfano de andaimes traçado pela carioca Carla Juaçaba (com conteúdo de Bia Lessa) sobre o Forte de Copacabana. Além dos 200 mil visitantes, o pavilhão fugaz encantou o meio arquitetôn­ico, da estudantad­a à crítica internacio­nal.

Agora, aos 42 anos, na companhia do inglês Norman Foster, a arquiteta do Rio está entre os dez convidados do Vaticano que irão criar capelas na Bienal de Arquitetur­a de Veneza.

Seduzindo os coletivos com criações que os inspiram, Juaçaba, paradoxalm­ente, reafirma a prática consagrada, distancia-se do ativismo e consolida-se como festejada autora

 de espaços apurados.

Fernando Serapião, 46, crítico de arquitetur­a, é editor da revista Monolito e autor de “A Arquitetur­a de Croce, Aflalo e Gasperini” (Paralaxe).

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Leonardo Finotti/Architectu­ral P/Arch Daily Obra de Carla Juaçaba e Bia Lessa para a Rio+20

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