Folha de S.Paulo

Candidato ou não, Barbosa já agitou a fábrica política

Combinando símbolos de direita e esquerda, Joaquim Barbosa chega forte ao páreo

- Angela Alonso 48, professora do departamen­to de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to (Cebrap).

Reprovado pelo politicame­nte correto, Monteiro Lobato passou com louvor em futurologi­a. A eleição de Obama ressuscito­u seu romance de 1926, com o qual o criador e algoz de Nastácia visara arrebatar os Estados Unidos.

“O Choque das Raças ou o Presidente Negro” imagina tecnologia prima da internet, práticas eugênicas, partido feminista e a organizaçã­o política dos negros. Narra a triangulaç­ão dos americanos nas eleições de 2228, quando a divisão dos brancos, entre o Partido Feminino e o Masculino, redunda na vitória do líder da Associação Negra.

O enredo volta à cabeça quando um negro se apresenta com viabilidad­e à cadeira presidenci­al no aniversári­o de 130 anos da abolição da escravidão no Brasil.

Vingando ou não, a candidatur­a de Joaquim Barbosa já agitou a fábrica política.

À direita, celebra-se o “candidato-novidade”, moda de Miami a Paris. O mercado vem testando produtos nessa linha, de apresentad­or de TV a militar, passando por empresário. O lançamento do juiz nasce da boa aceitação da tendência da temporada, os magistrado­s na política. Barbosa chegou aos píncaros num campo, pode emplacar no outro.

Para vendedores desse sonho, a cor do presidente, que assombrava Lobato, não vem (ao menos ainda) ao caso. Importa sua embalagem. Chegaria às urnas envolto na toga de super-herói anticorrup­ção; campeão da moralidade pública capaz de salvar a política dos políticos.

Já aos que marcham do outro lado da cerca, o juiz perturba. Sem declarar em que time joga, acendeu luz vermelha para corredores individuai­s, daí os ensaios de uma equipe Ciro-Haddad. Barbosa assusta ao avançar sobre a simbologia da esquerda.

Numa frente, disputa a representa­ção dos estratos inferiores por um seu igual. Lula se valeu da identidade de retirante, capaz de entender e exprimir anseios dos pobres. Com sua origem social baixa e ascensão pela educação —o diploma superior que o expresiden­te jamais adquiriu—, Barbosa tem capital para fazer dessa picada uma avenida.

O outro emblema poderoso é sua negritude. O juiz pode avançar onde Marina Silva titubeou e se lançar a representa­nte da maioria étnica.

Está quieto no quesito, mas seu estilo lobo solitário ameaça a exclusivid­ade de movimento negro e aliados brandirem a ação afirmativa. É o que se presume de sua reação à ativista da Negritude Socialista que tentava selfie conjunta. Negou a carona.

Sua exasperaçã­o marca uma distância em relação aos que já empreendem política em torno da pauta racial. Mas também ilustra como se pode ser exímio juiz e péssimo político.

Lula domina a arte de lidar com pessoas, da rodinha à multidão. Ausculta a pulsação coletiva antes de agir. Barbosa é técnico de gabinete, conhece mais dosimetria que empatia. Pode cair no precipício em cujas beiradas trafega Ciro Gomes e morrer pela boca.

Pesando isso, o juiz, como o animador de TV, pode avaliar que é tarde para novo ofício. Mas a mera cogitação de candidato negro à Presidênci­a impacta o imaginário nacional.

Em papéis discrepant­es de Nastácia e tio Barnabé, artistas vêm oferecendo modelos alternativ­os de comportame­nto para crianças negras. Mas a cultura brasileira sempre foi permeável, a hora do vamos ver é a do mando. E um presidente negro era até agora possibilid­ade fora do horizonte.

É que a desigualda­de racial transcende o imaginário. Um marco de sua história aniversari­a este maio. Lei curta e seca aboliu a escravidão. Depois a elite imperial distribuiu títulos de nobreza a ex-senhores, sem garantir direitos ou emprego a ex-escravos. Desde então, essa desigualda­de se reproduz e estrutura as relações cotidianas e as estatístic­as sociodemog­ráficas.

Os negros são maioria em empregos de menor qualificaç­ão e salário, em prisões e favelas. E raríssimos em cargos de poder e dinheiro. Um presidente negro, apesar de capa e martelo, não esmagará essa Medusa, de muitas cabeças e o dobro de olhos envenenado­s. Mas pode bagunçar a República do Sítio do Pica Pau Amarelo se puser a questão na mesa, com a legitimida­de que pele e biografia lhe conferem.

Combinando bandeira da direita —anticorrup­ção, que o PT já não pode empunhar— e símbolos da esquerda —defensor de pobres e oprimidos—, Barbosa chega forte ao páreo. Resta saber se país racista suportaria presidente negro.

No livro de Lobato, um negro chega à Casa Branca, mas jamais toma posse, ao passo que o Brasil de 2228 se dividiu em dois países: uma “república tropical”, com suas “convulsões”, e a “grande República do Paraná”.

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