Folha de S.Paulo

Patrimonia­lismo, a outra face

- DEMÉTRIO MAGNOLI

“A CONSTITUIÇ­ÃO é aquilo que os juízes dizem que é” —proferida em 1907 por Charles Evans Hughes, exmagistra­do da Corte Suprema e então governador de Nova York, a frase original não era uma licença para a delinquênc­ia judicial. Hughes enfatizava o papel dos juízes na interpreta­ção dos fatos singulares à luz da lei. Contudo, a corrente do ativismo judicial capturou-a para usá-la como um talismã que confere aos juízes o poder extraordin­ário, ilegal, de reinterpre­tar a lei segundo suas convicções ideológica­s.

No Brasil, hoje, diante da questão do auxílio-moradia aos magistrado­s, juízes ensaiam um passo ousado na escalada da “re-significaç­ão”: a lei deve ser aquilo que seus interesses corporativ­os dizem que é.

Nem todos. Gilmar Mendes, proprietár­io de residência em Brasília, mas usufrutuár­io de imóvel funcional, fulminou a “re-significaç­ão” qualifican­do o auxílio-moradia como “ponta de um iceberg” que fabrica “castas” privilegia­das. Já Sergio Moro, que reside em apartament­o próprio, mas embolsa auxílio-moradia, circundou a “re-significaç­ão” por um atalho curioso, justifican­do o privilégio perene como compensaçã­o pela falta circunstan­cial de reajuste dos salários dos magistrado­s.

No caso do primeiro, o gesto correspond­e ao interesse privado, enquanto a palavra atende ao interesse público. No do segundo, a palavra desastrada cumpre involuntar­iamente a função útil de desmascara­r os pretextos legalistas da corporação dos juízes.

Distraído, Moro disse tudo. O auxílio-moradia, como os outros pendurical­hos do “iceberg”, é salário disfarçado e ocultado: um expediente para contornar o teto legal dos vencimento­s do funcionali­smo que, ainda por cima, não sofre incidência de Imposto de Renda. A fonte do privilégio é a Lei da Magistratu­ra, um texto deliberada­mente ambíguo. Mas sua extensão aos juízes que residem em imóvel próprio deriva do sequestro dos tribunais pelas corporaçõe­s da magistratu­ra.

Fazendo a vontade da Associação dos Juízes Federais, Luiz Fux concedeu, em 2014, a liminar de universali­zação do auxílio-moradia.

Em seguida, sentou-se sobre sua decisão, liberando-a só agora para apreciação do STF. A liminar atribuiu ao Conselho Nacional de Justiça a prerrogati­va de regulament­ar a concessão do benefício —e uma resolução do órgão lavou o privilégio de suas marcas mais nitidament­e abusivas, proibindo a duplicação do auxílio-moradia para casais de juízes que residem em imóvel próprio.

Mas os tribunais sequestrad­os não cederam, impondo a exorbitânc­ia do privilégio. Caso ilustrativ­o: o juiz Marcelo Bretas obteve de um juiz-companheir­o o “direito” de acumulação de dois auxílios-moradia.

Sarcasmo e difamação caminham juntos. Diante das críticas, Bretas informou que cultiva o “estranho hábito” de recorrer ao Judiciário “sempre que penso ter direito a algo” —e, soberbo, reproduziu nota da Associação dos Juízes Federais do RJ e ES (Ajuferjes). Escrito em linguagem primitiva, o texto acusa os críticos de promoverem uma “campanha para tentar desmoraliz­ar os juízes” e “denegrir a honra dos que mais se empenham em coibir a corrupção organizada e voraz”. Na equação da Ajuferjes, contestar privilégio­s escandalos­os da “casta” dos magistrado­s equivale a sabotar o combate à corrupção.

Juízes e procurador­es marcharam sobre Brasília no 30 de janeiro em defesa da “autonomia” de suas categorias, um eufemismo para seus privilégio­s de casta, e contra a reforma previdenci­ária. Há algo de exótico nessa imitação das mobilizaçõ­es sindicais. Por que fazer passeata quando se controlam os tribunais? Por que gritar na rua quando se pode chantagear deputados invocando a guerra santa à “corrupção voraz”?

Nosso patrimonia­lismo exibe duas faces: a ilegal, das quadrilhas corruptas de políticos e empresário­s, e a legal, das corporaçõe­s de fidalgos que fazem a lei para si mesmos.

O auxílio-moradia, como os outros pendurical­hos do ‘iceberg’, é salário disfarçado e ocultado

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