Folha de S.Paulo

Um conceito forte, em um propósito, em uma narrativa muito boa. O roteiro é a raiz.

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Pergunta - O sr. abreviou as filmagens de “Jogador Nº 1” para fazer “The Post” em sete meses. Algo muito rápido, até mesmo para Spielberg.

Steven Spielberg - Sem dúvida. Foram as filmagens mais rápidas da minha carreira. A primeira razão foi o roteiro ser muito bom e falar de algo que me fascina. Como você define liderança? Ali estava Katharine Graham, líder e publisher do “The Washington Post” e, mesmo assim, os homens no seu conselho editorial olhavam através dela, como se fosse invisível. Que marca isso deixa numa mulher assim, como ela superou as adversidad­es? Foi isso que me atraiu, antes de qualquer analogia política entre 1971 e 2017. Ao mesmo tempo, nunca senti motivação tão grande. Fiz “The Post” porque acho que é meu modo de “tuitar” (risos). O momento político dos Estados Unidos foi um despertar?

Sim. Sentia que era uma história ótima sobre uma grande mulher, um homem incrível e um período da história que poucas pessoas conhecem. O escândalo do Watergate não existiria sem a publicação dos Papéis do Pentágono, porque Graham ganhou mais coragem, assim como Bradlee, que também ficou mais sábio para permitir que [Bob] Woodward e [Carl] Bernstein [repórteres do “Washington Post”] seguissem a trilha do dinheiro até [o presidente, Richard] Nixon. Acho que, se os dois não tivessem arriscado serem presos e perderem o jornal com a publicação dos Papéis do Pentágono, não teriam tido a determinaç­ão para perseguir Nixon. O sr. se lembra da publicação dos Papéis do Pentágono?

Lembro da época, mas não lembro deles especifica­mente. Recordo mais do escândalo de Watergate, porque levou à renúncia de Nixon. Na época, tudo que passava na minha cabeça era dirigir programas de TV e criar meu primeiro filme de cinema. Então não prestei nenhuma atenção no mundo em 1971. Não lia jornais e não via os noticiário­s. Apenas ia ao cinema e escrevia roteiros. Só acordei quando pessoas que conheci na faculdade começaram a morrer no Vietnã e quando a história sobre Watergate foi publicada. Passei a dar mais atenção ao meu redor. Qual é a importânci­a de fazer um filme sobre a liberdade de imprensa hoje em dia?

Nunca houve uma cortina de fumaça de desinforma­ção tão forte na história. É algo que se coloca entre o público e a imprensa. A criação de palavras icônicas como “fatos alternativ­os” ou “fake news”, nunca vi isso antes. A história de Nixon tentar impedir o “Washington Post” de publicar os documentos, algo garantido pela Constituiç­ão, apresenta profunda similarida­des com o que está acontecend­o hoje. Como está se sentindo como cidadão americano?

Nunca estive tão frustrado na minha vida. Frustrado com a inabilidad­e de parte deste país de escutar e com a habilidade de falar, mas sem ser ouvido, de outra parte. Não há diálogo mais. Sempre tivemos um Congresso dividido. Mas nunca vi um entrinchei­ramento tão vil e dogmático. E nunca vi tamanha raiva na política. Não consigo encontrar o que seria uma maneira de começar um diálogo. Nunca vi tamanho entrave e não vejo nenhuma luz no fim do túnel. O filme está sendo visto como partidário. A própria ideia de a imprensa buscar a verdade é considerad­a partidária.

A imprensa livre luta pela verdade. Para mim, isso é um fato, e não uma percepção partidária. Há um sistema sujo rotulando tudo aquilo em que não acredita de “falso” ou “partidário”. Esperava esse tipo de acusação. Ficaria decepciona­do se não viesse. “The Post” também é sobre feminismo. Como pessoas boas sobrevivem em uma indústria que se revela tão abusiva?

Hollywood está no epicentro de uma epidemia real para as mulheres em todas as ocupações. Elas estão dando um passo à frente, falando sobre o que sofreram e carregaram todos esses anos. Graças a Deus estão enfim podendo falar abertament­e. Mas isso não é apenas uma história de Hollywood, é algo que acontece nos jornais, nos esportes, faculdades, fábricas, fazendas. Nunca houve um momento essencial como esse. Acho que nossos filhos olharão para 2017 como o ano em que o silêncio foi quebrado. Ficou surpreso com a enorme quantidade de casos?

Deveria ter ficado, mas não. Essas coisas estiveram na nossa visão periférica por anos. Chegou a hora de uma revolução no melhor sentido do termo. É preciso haver um código de ética e conduta que não se limite aos departamen­tos de recursos humanos. É diferente fazer um filme como “O Parque dos Dinossauro­s” e “The Post”? Qual o verdadeiro Spielberg?

Não sei. Deixo isso para minha mulher e meus filhos. Ou para meu público, que geralmente tem uma opinião sobre quem sou (risos). Sou o resultado direto de um roteiro, que determina tudo que faço em um filme. Não crio longas do nada e não peço para atores improvisar­em. Acredito em Você encontrou as pessoas reais retratadas em “The Post” em algum momento da vida?

Ben Bradlee foi meu vizinho por 15 anos e conheci sua mulher e filhos. Conheci Katharine Graham em 1998 e almoçamos. Os filhos e netos dela nos ajudaram a coletar as momento em que o jornalista era visto como herói, segundo Clóvis Rossi, colunistad­a “Hoje, é o contrário: o jornalista leva porrada de todos, inclusive do leitor”. Na última segunda (21), a organizou préestreia gratuita do longa, seguida de debate. Para Eugênio Bucci, professor titular da ECA-USP que também participou da conversa, “é difícil pensar o jornalismo de hoje nas condições do filme. Isso mudou de figura”.

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A gente não falava disso. Quando eu perguntava sobre Nixon e o “Post”, ele dizia: “Vá ver o filme [‘Todos os Homens do Presidente’]!” (risos). Tudo mudou quando ele viu “O Resgate do Soldado Ryan”, em 1998. Ele gostou tanto que começou a me falar de suas experiênci­as na guerra, algo que nunca tinha feito antes. Ele serviu na informação da Marinha no sul do Pacífico e comandava centenas de pessoas. Foi onde aprendeu o equilíbrio entre inspiração e disciplina, vital para liderança. Por que o sr. diz que a inseguranç­a é sua maior fonte?

A vontade de fazer direito. Nunca havia trabalhado com Meryl Streep antes, nunca vira Tom [Hanks] e Meryl juntos. Além disso, é uma história de peso. É sobre uma Presidênci­a determinad­a a arrasar jornais e impedir nossos direitos à Primeira Emenda [que garante liberdade de expressão]. O que mais o assusta hoje?

A Coreia do Norte. E algum confronto entre os países que levaria a algo que não consigo nem mencionar. As outras mudanças na sociedade só me dão coragem e esperança.

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