Folha de S.Paulo

Violência para clínicas 2 vezes ao dia no Rio

Unidades municipais de saúde voltadas à atenção básica tiveram 65% mais interrupçõ­es em relação ao ano passado

- LUIZA FRANCO

No coração de favelas, postos usam protocolo da Cruz Vermelha sobre condições de trabalho em razão de conflitos

Karina Conceição, 29, mora na Rocinha, tem depressão e é dependente química. No dia em que começou a “guerra” —como moradores chamam a disputa entre facções pelo controle do tráfico ali— , em setembro, ela estava internada no Centro de Atenção Psicossoci­al da favela.

As paredes do centro foram perfuradas por diversas balas. Por sorte, nenhuma a atingiu. Com a ajuda de funcionári­os, ela foi levada para a UPA (Unidade de Pronto Atendiment­o), que fica logo ao lado e tem uma localizaçã­o um pouco menos exposta.

A falência da política de segurança no Rio e o recrudesci­mento generaliza­do da violência na cidade, especialme­nte em favelas, têm colocado unidades de saúde na linha de tiro, gerando cenas de guerra, provocando a evasão de profission­ais e deixando a população, historicam­ente desassisti­da, ainda mais vulnerável.

Nos dias mais violentos do conflito entre as facções, as unidades da Rocinha, que tem cerca de 70 mil moradores, não abriram as portas. O mesmo acontece nas outras comunidade­s da cidade.

Um termômetro da piora na situação vem de dados das Clínicas da Família, unidades municipais de saúde voltadas à atenção básica. Para ficarem próximas dos pacientes, muitas delas são localizada­s no coração das favelas, o que as torna mais vulnerávei­s.

Por isso, desde 2009, elas adotam um protocolo desenvolvi­do pela Cruz Vermelha, com parâmetros para o trabalho em momentos de conflito. Ele ajuda os profission­ais a decidir se fecham ou não a clínica e se vão ou não à casa de pacientes acamados.

O protocolo indica que, a cada dia deste ano, alguma Clínica da Família teve que fechar as portas em média duas vezes por causa do risco, segundo dados de setembro.

Houve um aumento de 65%

ISABELA FREITAS, 35

médica em Clínica da Família no Rio no número de interrupçõ­es do atendiment­o em relação ao mesmo período de 2016, que já foi um ano violento. O atendiment­o na casa dos pacientes foi cancelado, em média, cinco vezes por dia, 31% a mais do que no ano passado.

As Clínicas da Família são compostas por médicos, dentistas, enfermeiro­s e agentes comunitári­os de saúde. As doenças mais tratadas são as crônicas, como hipertensã­o e diabetes, além de doenças infecciosa­s, como tuberculos­e, muito comum nas favelas cariocas, e HIV. As clínicas fazem também pré-natal e pediatria. O objetivo é dar atendiment­o próximo aos cidadãos mais pobres, além de desafogar a rede de hospitais.

“Não sei o que vai ser se isto aqui acabar um dia”, diz uma moradora da Rocinha que não quis se identifica­r. “A gente não tem para onde ir. Outro dia, minha filha, que tem problema de pressão, passou mal. A clínica estava fechada. Tentei levá-la ao Miguel Couto [hospital municipal próximo], mas a polícia não estava deixando ninguém passar por causa da guerra. Não tínhamos o que fazer.”

A tensão também afeta os médicos. “Outro dia, começou um tiroteio tão intenso que tivemos que fechar”, conta a médica Isabela Freitas, 35, da clínica do Catumbi, perto do centro do Rio, que nem é um dos lugares mais conflagrad­os da cidade.

“Eu estava atendendo e passou um colega gritando que íamos fechar, e nós mandamos todos deitarem no chão. É assim que funciona. Se houver alguém numa situação de saúde mais grave, vamos estabiliza­r e mandar para outro lugar quando der.”

Ela diz que se sente traumatiza­da, mas não quer sair do emprego. “Acho que sofro de algum grau de estresse póstraumát­ico, mas a gente vai aprendendo a lidar com as emoções”, afirma a médica.

Outros falam que já estão acostumado­s com o risco. “A verdade é que a gente naturaliza a violência. Eu não tenho medo”, diz um médico de Manguinhos, na zona norte. QUESTÃO DIFÍCIL Medidas para tornar as clínicas mais resistente­s a tiros podem não ser a melhor opção. “Ter um ambiente tipo um bunker pode prejudicar a dinâmica, porque o lugar acaba sendo utilizado pelos criminosos para se abrigar. Não são questões fáceis”, afirma Fernanda Prudência, da Secretaria Municipal de Saúde.

Para um médico de Manguinhos, o protocolo da Cruz Vermelha também “não traz segurança, é uma medida de redução de danos”.

O documento traz uma escala de três cores. A cor verde indica que o ambiente está seguro, e a clínica funciona normalment­e. Amarelo significa que há ameaça iminente. Nesses momentos, a equipe só faz atendiment­o dentro da unidade, cancelando visitas às casas de pacientes acamados ou com dificuldad­e de locomoção. Já a cor vermelha sinaliza que a clínica fecha.

Um grupo de médicos e enfermeiro­s, em conjunto com agentes comunitári­os de saúde, define qual será o protocolo do dia, com base em informaçõe­s da favela. Os critérios variam de acordo com a unidade. A presença de um traficante armado próximo às instalaçõe­s pode fazer médicos acionarem o protocolo vermelho em algumas favelas, e amarelo em outras onde a cena é mais comum.

Também há risco quando algum criminoso está sendo atendido na clínica. Em agosto deste ano, por exemplo, um traficante baleado ferido foi levado ao pronto-socorro da UPA (Unidade de Pronto Atendiment­o) do Jacarezinh­o, favela na zona norte.

Policiais guardavam a porta da unidade de saúde quando homens armados passaram atirando. Depois disso, traumatiza­dos, alguns funcionári­os deixaram a clínica, de acordo com pessoas que ainda trabalham lá.

Outros continuam. “A violência que os moradores sofrem é tão maior do que a minha. Eu sei que não vou conseguir mudar a realidade, mas aquilo é um direito deles, eu não estou ali fazendo favores. Para mim, estar lá fala mais alto do que o medo que eu sinto”, afirma uma médica não identifica­da por motivos de segurança.

“tiroteio tão intenso que tivemos que fechar. Eu estava atendendo [...], e mandamos todos deitarem no chão. É assim que funciona

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Ricardo Borges/Folhapress Unidade de Pronto Atendiment­o da Rocinha teve funcioname­nto prejudicad­o por constantes confrontos na favela do Rio

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