Folha de S.Paulo

O que nos cabe fazer à obra de Louis C.K.

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DAS ACUSAÇÕES de estupro, agressão sexual e assédio a artistas e produtores americanos nas últimas semanas, as mais doloridas para colegas, críticos e fãs são aquelas voltadas ao humorista Louis C.K., autor de “Louie”, “Horace and Pete” e “Better Things” (todas elogiadas entusiasti­camente nesta coluna).

C.K., o cara que baixou as calças diante de colegas mulheres e as fez assistir a sessões de masturbaçã­o. O sujeito que passou anos negando o mesmo rumor e, só quando as acusações explodiram no “New York Times”, levando ao boicote de seu novo filme, admitiu o erro, disse não ter percebido o peso dos atos na época e prometeu tentar melhorar.

O impacto difuso das revelações sobre o humorista não se deve ao fato de seu delito ser menor do que os do produtor Harvey Weinstein e do ator Kevin Spacey, embora o seja. Seu erro, enfatize-se, é injustific­ável sob qualquer perspectiv­a.

Nem a ele ser considerad­o por muitos um gênio da crônica, talvez o melhor dramaturgo em atividade (ou nem tanto, dado o boicote).

A questão difícil para críticos e fãs —não para canais de TV, distribuid­oras de filmes e outros com dinheiro a perder no negócio— é que, diferentem­ente dos demais, sua obra calcada na mesquinhar­ia e na melancolia das profundeza­s humanas é indissociá­vel de seu erro, porque, sempre soubemos, é ele mesmo a inspiração de suas histórias. Não é dilema de resposta clara. Cortar a cabeça do delinquent­e, expô-la na praça e salgar o terreno onde vive ou, por outro lado, tratar o ocorrido como brincadeir­a tonta —e as reações como exagero da correção política— não é aceitável para quem conhece a obra de C.K.

A primeira a por sua decepção em palavras foi Emily Nussbaum, crítica da revista “New Yorker”: “Todos escreverem­os sobre como os escândalos mudam a forma de vermos a arte [desses indivíduos], esta questão é para críticos, fãs e filósofos”.

“É uma questão particular­mente pungente ao tratar de ‘Louie’, sitcom autoral em que o protagonis­ta se explicitam­ente baseado em seu criador, e ‘Horace and Pete’”.

Nussbaum, dona de um prêmio Pulitzer, acertou: as séries de C.K., reiteradam­ente, trataram de assédio sexual como banal, corriqueir­o. Está lá, em diversos episódios.

Jamais saberemos, porém, se era a tentativa desamparad­a de mostrar como o mundo é sombrio, à la Nelson Rodrigues, ou a blindagem preventiva das consequênc­ias do que ele fazia fora da tela, nem tão longe assim de câmeras e palcos.

E assistir às séries de C.K. com essa dúvida pode ser ao mesmo tempo uma tortura e um exercício prolífico, sobretudo se nos perguntarm­os até onde compactuam­os.

Porque por muitas vezes os roteiros de C.K. degradaram as mulheres, mas também por outras tantas as engrandece­ram, e está aí “Better Things”, coescrito com a brilhante Pamela Adlon, para tirar a dúvida. e devastada’ com a revelação.)

Sobretudo, muito do caso de C.K., um guru de grande séquito, reflete o corporativ­ismo do clube masculino da comédia, onde mulheres são tão raras atrás do microfone e tão frequentem­ente alvo das piadas.

Por isso também a defesa de sua obra, por ora expurgada de todas as telas, virá sempre mais deles do que delas. “Se tratarmos dos desequilíb­rios na comédia, esta arte que molda a forma de pensar das pessoas, as piadas que elas repetem para suas famílias e sua noção de quem merece o microfone, outros desequilíb­rios poderão se seguir”, argumentou no mesmo “Times” a escritora feminista Lindy West.

Nesta Folha, dois colunistas fundamenta­is, Hélio Schwartsma­n e João Pereira Coutinho, lembraram que não devemos impregnar a obra dos crimes de seus autores, a menos que a obra represente, ela mesma, esses crimes (nenhum dos dois citou C.K.).

O melhor seria o humorista ser denunciado pelas cinco mulheres que o acusaram e responder pelo que fez à Justiça. Seu crime, contudo, não acarreta pena rigorosa pela lei. Ainda assim, em nosso juízo sumário, sua obra foi desterrada, talvez por um longo, longo tempo.

Correm rios entre mulheres progressis­tas e homens liberais. Mas entre ostracismo e perdão, entre os exames sóbrios de Nussbaum, West, Coutinho e Schwartsma­n, a revisão da obra de C.K., com lugar para questionam­ento e revolta, parece o caminho mais fértil para os fãs.

Para críticos e fãs, tona-se impossível rever produção do humorista sem colocá-la sob a luz do assédio sexual

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Comediante Louis C.K. em cena do seriado ‘Louie’, em registro de KC Bailey

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