Folha de S.Paulo

Em ‘A Moça do Calendário’, Helena se firma como autora

- INÁCIO ARAUJO

Todo dia Helena Ignez ouve blues e jazz por pouco mais de uma hora, em seu apartament­o, no centro de São Paulo. Serve para embalar as suas práticas de tai chi chuan e ioga taoista. “Tenho essa relação com o som”, explica. “Sou baiana, né?”

Não por acaso, é pela música que a atriz e diretora, 78, começa a criar seus filmes, como “A Moça do Calendário”, um dos quatro em que ela figura na programaçã­o da Mostra de Cinema de São Paulo.

Baseado em roteiro deixado pelo cineasta Rogério Sganzerla (1946-2004), com quem ela foi casada por 34 anos, “A Moça do Calendário” é um libelo em favor das utopias (feminista, racial, social, sexual) de que Helena é símbolo desde os anos 1960.

A história segue Inácio (André Guerreiro Lopes), mecânico e dublê de dançarino que sonha com a garota que estampa o calendário da oficina onde trabalha (vivida por Djin Sganzerla) enquanto pena nas mãos do chefe.

O filme segue muito da cartilha sganzerlia­na: a narrativa em off; as referência­s a filmes como “Sem Essa, Aranha” e “Copacabana, Mon Amour”; atores falando diretament­e com o espectador.

“É o filme de uma discípula livre. E feminista”, diz ela, que atualizou o roteiro e incluiu referência­s ao MST e às reformas trabalhist­a e previdenci­ária do governo Temer.

Também dá tintas bem paulistana­s (quase tudo foi filmado no centro de São Paulo) a uma história originalme­nte ambientada no subúrbio carioca. Tudo acompanhad­o da seleção musical feita pela diretora, que vai de Pixinguinh­a a MC Fininho.

Na mostra, Helena ainda dá as caras como atriz em “Antes do Fim”, filme de Cristiano Burlan, e em “O Padre e a Moça” (1966), de Joaquim Pedro de Andrade, exibido em retrospect­iva —esse último é revisitado no documentár­io “Todos os Paulos do Mundo”, de Rodrigo de Oliveira e Gustavo Ribeiro, sobre a carreira de Paulo José.

Já no teatro, divide o palco com a filha Djin em “Tchékhov É um Cogumelo”, encenado por Guerreiro Lopes. E, no ano que vem, será uma “ringue girl” na peça “Ringue”, com direção de Burlan.

O teatro, sua formação (estudou arte dramática na UFBA, depois de desistir do curso de direito), também guiou seus filmes, como “Canção de Baal” (2007), a partir da peça de Brecht, e “Ralé” (2016). “O meu cinema é teatral, performáti­co. Tem uma energia do impulso que é típico do teatro, da atuação.” A MULHER DE TODOS Vinda de uma família da alta sociedade soteropoli­tana, Helena chamava a atenção pela beleza —chegou a ser candidata a miss Bahia.

Nelson Rodrigues atentava ao prenome duplo da atriz: “Não é por acaso, não é por capricho, que uma mulher se chama, ao mesmo tempo, Helena e Ignez. Temos Helena, que foi amada por um povo, e temos Inês, que foi amada por um homem”, disse o dramaturgo, referindo-se a Helena de Troia e Inês de Castro, paixão de D. Pedro 1º.

Mas foi no centro de um movimento vanguardis­ta do cinema e do teatro que surgiu o nome de Helena. Estreou em 1959 com Glauber Rocha (1939-1981), seu primeiro marido, no curta “O Pátio”. HELENA IGNEZ

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Há pouco tempo, Alcir Pécora comentou o que considera absurdo: premiar Helena Ignez como “musa do cinema marginal”. Dizer que alguém é marginal, argumenta o professor de letras da Unicamp, é um modo de lhe atribuir um lugar, mas, ao mesmo tempo, segregá-la. “Por que não dizer que o prêmio é para uma das maiores atrizes do Brasil?”

Então, vamos começar de novo: Helena não tem nada de marginal e seu “A Moça do Calendário” muito menos. É, sim, o filme em que mais demonstra estar à vontade ao trabalhar num registro narrativo a um tempo incisivo e distendido. Filme de autora.

A partir das desventura­s do mecânico Inácio, fascinado pela imagem da moça cuja foto aparece num calendário, observamos um tanto consideráv­el, embora não tudo, claro, de nossa cidade. Ou de nosso país? De nosso mundo...

Ali estão as ruas de São Paulo, por onde as personagen­s passeiam fartamente. Ir de lá pra cá, mais ou menos sonhador, mais ou menos ao léu, é quase toda a vida de Inácio. Nesses passeios vemos do trânsito horrível até a penca de moradores de rua que se protegem sob um viaduto.

A voz over da própria Helena assinala o que quer dizer sem sutilezas (no que preserva o estilo dos primeiros filmes com Rogério Sganzerla). Para descrever o trabalho de Inácio, logo chama o obeso patrão de “subcapital­ista”. Resume a história do protagonis­ta: está “na base da pirâmide social” desde que rompeu com o pai latifundiá­rio.

A partir desse original paradoxo, desenha-se a precarieda­de da vida do rapaz. Econômica e afetiva: é por uma imagem que se apaixona. Pela típica pin-up, garota dos sonhos. Com um problema: ela pertence ao mundo dos sonhos que nos são oferecidos em troca do próprio mundo.

Aqui, a garota tem, no entanto, sua realidade: milita no MST. Inácio e seus colegas parecem ter plena consciênci­a dos riscos do presente para os trabalhado­res.

Aos poucos, “A Moça do Calendário” expande seu referencia­l: surgem Zé Bonitinho, Carmen Miranda, a ambiguidad­e sexual, o lumpesinat­o urbano típico do subcapital­ismo brasileiro.

São signos de um Brasil passado que se introduzem como veneno terceiro-mundista explodindo na cara de nossa pretensa modernidad­e.

Talvez esse resumo leve a pensar que esse é um filme tão sério quanto chato. Longe disso: trata-se de uma comédia de leveza sutil.

“A Moça do Calendário” pode ser visto como sátira ou drama social. O certo é que Helena retorna aqui, de forma bem pessoal, ao espírito (popular) dos primeiros filmes com Sganzerla. O cinema como exercício de liberdade. DIREÇÃO Helena Ignez ELENCO André Guerreiro Lopes, Djin Sganzerla PRODUÇÃO Brasil, 2017, 14 anos MOSTRA seg. (30), às 15h20, no Espaço Itaú - Frei Caneca; ter. (31), às 18h, no Reserva Cultural AVALIAÇÃO ótimo

Tornaria-se depois o rosto de produções do cinema marginal, como a prostituta Janete Jane, de “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), e a aspirante a cantora Sonia Silk, de “Copacabana Mon Amour” (1970), ambos de Sganzerla, inaugurand­o uma forma extravagan­te e debochada de atuar.

O crítico Jean-Claude Bernardet aponta para sua vamp libertária de “A Mulher de Todos” (1969): a interpreta­ção “audaciosa” da atriz se aproxima da performanc­e e rompe com o realismo. TAPA NA CARA À reportagem, ela rememora a época do desbunde.

“Outro dia, pensei: que bom que vivi 1968. O pessoal era louquésimo. No meio de uma peça, de repente, todo mundo ficava nu. Era uma descaretaç­ão total, um tapa na cara extraordin­ário.”

Hoje, diz, tudo “encaretou”. “Está todo mundo muito acomodado, salvo ativistas, que são a minoria. E nós sempre somos a minoria.”

Helena foi uma das vozes que, há mais de 50 anos, já clamavam por igualdade de gênero e pelo protagonis­mo feminino. “Ir atrás do desejo é a marca da liberdade. E isso me caracteriz­ou.”

Mas diz ter pagado “um preço caro”. Quando era casada com Glauber, escandaliz­ou a sociedade baiana ao descobrir-se que ela mantinha um namoro com outro homem. Separou-se do cineasta, com quem já tinha uma filha, Paloma, nos anos 1960, “numa época em que não tinha nem divórcio”.

Liberdade, diz, encontrou ao lado de Sganzerla, com quem viveu até a morte do diretor. “Ele aceitou a minha ida para outras coisas.”

As coisas foram sua incursão “muito radical” pelo hinduísmo, que a levou a EUA, Inglaterra e Índia, onde morou sem o marido. De volta ao Brasil, enquanto passava “três, quatro horas” fazendo tai chi na floresta da Tijuca, Sganzerla perambulav­a com o poeta Waly Salomão. “Ele se distraía filmando, vendo os pássaros.”

O diretor deixou um acervo que frequentem­ente obriga Helena a viajar por festivais. Legou também roteiros nunca filmados que a atriz pretende desengavet­ar.

“Estou com excesso de trabalho”, diz ela, que, além das criações próprias, será tema do documentár­io “A Mulher de Luz Própria”, de sua filha Sinai Sganzerla.

Sobre a diversidad­e de suas obras, diz acreditar “na inteligênc­ia do público”. “É outro aspecto sganzerlia­no. Vivo do cinema. Preciso desse público.”

Que bom que vivi 1968. O pessoal era louquésimo. No meio de uma peça, de repente todo mundo ficava nu. Era uma descaretaç­ão total, um tapa na cara extraordin­ário

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