Folha de S.Paulo

A China e a atualidade de 1917

- COLUNISTAS DA SEMANA quinta: Clóvis Rossi, domingo: Clóvis Rossi, MATHIAS ALENCASTRO Jaime Spitzcovsk­y

NO PASSADO dia 26, cumpriu-se o centenário de um dos mais importante­s eventos políticos da historia contemporâ­nea: a Revolução Russa de 1917. O 19º congresso do Partido Comunista Chinês, realizado nessa mesma semana, pode vir a ser lembrado igualmente como um acontecime­nto decisivo, lançando as bases de uma nova ordem mundial.

É na condição de recém-consagrado líder mais poderoso da China desde Mao Tsé-Tung que Xi Jinping encontrará Donald Trump, o presidente mais desmoraliz­ado da história recente dos Estados Unidos, na cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico de novembro.

Ninguém poderia prever a ascensão do Partido Comunista Chinês à posição de proeminent­e ator global. À imagem dos sucessores de Stalin, os dirigentes chineses disfarçava­m a degradação contínua da cultura política do partido em uma rota de liberaliza­ção incerta e insegura.

Essa tendência foi revertida por Xi Jinping. Durante o seu primeiro mandato de cinco anos, ele estancou a perda de influência do partido-Estado sobre a economia, neutralizo­u o poder da oligarquia econômica emergente através de uma feroz e politizada luta contra a corrupção, tornou, por meio da “nova rota da seda”, a expansão da influência da China um motivo de orgulho nacional, e, por fim, reativou o culto da personalid­ade abandonado desde Mao.

Em outras palavras, sob o comando de Xi Jinping, o Partido Comunista Chinês abandonou o reformismo morno e reciclou a velha receita de governo centraliza­dor e personalis­ta.

Na atualidade, o modelo chinês exerce o mesmo fascínio que o modelo soviético no seu auge. De Ruanda à Etiópia, passando por Angola, líderes de partidos pós-coloniais africanos, que outrora se espelhavam na aventura soviética para justificar as suas revoluções, reivindica­m o exemplo chinês para romper com a tutela das instituiçõ­es internacio­nais. No leste europeu, presidente­s da Polônia e da Hungria citam a China como inspiração para o Estado “iliberal” que pretendem impor à União Europeia. Na Ásia, o Vietnã tem crescido exponencia­lmente desde que se transformo­u na “China da China”.

O êxito do Partido Comunista Chinês dita o fracasso da profecia de Francis Fukuyama formulada em 1989. Ela estabeleci­a que o modelo de cresciment­o dos países comunistas era insustentá­vel, que a liberaliza­ção econômica levaria à abertura política, e que, nesse processo, a experiênci­a soviética deixaria de ter relevância histórica global.

Porém, Xi Jinping soube evitar a armadilha da democracia de mercado, utilizando o mercado para consolidar o seu poder em vez de ser dominado por ele. Consequent­emente, o caráter dirigista e autoritári­o do regime saiu reforçado do processo de internacio­nalização da economia. Nesse contexto, custa entender porque governos como o brasileiro continuam chamando de “privatizaç­ão” a venda de bens públicos para o Partido Comunista Chinês. Tudo indica que as contradiçõ­es do capitalism­o continuarã­o sendo instrument­alizadas pelo mais bem-sucedido e legatário da Revolução Bolcheviqu­e.

Sob Xi Jinping, o partido abandonou o reformismo morno e reciclou a receita de governo centraliza­dor

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