Folha de S.Paulo

Relatório da Comissão de Direitos Humanos da ONU de

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O Exército birmanês chegou ao vilarejo rohingya onde Amina (nome fictício) morava, em Mianmar. Cercou as casas; separou de um lado os homens, de outro, as mulheres e as crianças.

Os homens foram espancados e torturados. As mulheres, estupradas. Amina viu o marido e o pai serem mortos.

Ela tinha dado à luz cinco dias antes, mas foi estuprada, assim como sua mãe e irmã. As casas foram queimadas. Quando os militares foram embora, ela e outros sobreviven­tes reuniram forças e correram até outro vilarejo.

Alguns dias depois, os militares chegaram lá também. Seguiu-se o mesmo procedimen­to: vilarejo cercado; homens, mulheres e crianças separados. Amina foi novamente estuprada. Desta vez, a mãe dela morreu.

Após dois estupros e sendo uma parturient­e, não sentia ter forças para fugir de novo. Disseram-lhe que tinha de deixar o filho se quisesse chegar a Bangladesh. Ela então deixou o bebê para trás.

O relato acima foi coletado pela obstetriz brasileira Andrêza Trajano, 31, que trabalhava na clínica da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) onde Amina foi atendida, no campo de Kutupalong, em Cox’s Bazar, Bangladesh.

A ONU e diversas ONGs de direitos humanos e de ajuda humanitári­a apontam que a violência sexual se tornou uma arma sistemátic­a e premeditad­a do Exército na campanha de limpeza étnica contra a minoria étnica rohingya em Mianmar, país de maioria budista no Sudeste Asiático.

“É bem claro que o estupro é usado como arma de limpeza étnica. É como o Exército birmanês opera”, afirma Skye Wheeler, especialis­ta em direitos da mulher da ONG Human Rights Watch. “É uma campanha de medo. Uma das maneiras como eles criam terror e forçam as pessoas a fugir é pela violência sexual.” CRIANÇAS setembro aponta que mulheres e meninas de até cinco anos têm sido alvo de estupro e estupro coletivo, normalment­e por homens de uniforme e diante da família.

O texto também cita o “desapareci­mento das mais bonitas das vilas” —possíveis vítimas de tráfico sexual.

“Como obstetriz, trabalhava com a parte sexual e reprodutiv­a da clínica. O que vi muito e atendi foram casos de violência sexual, durante o período em que aumentou a quantidade de pessoas vindo de Mianmar”, conta Trajano, que atuou em Cox’s Bazar até o fim de agosto.

“Quando cheguei, tive quase dois meses de calmaria. Casos de violência sexual eram de um a três por mês. Claro que sempre tem aquele viés de que as pessoas não buscam [ajuda]. Mas quando saí, a média era 15 por mês.”

Trajano deixou Bangladesh momentos antes de a última onda de refugiados começar —no fim de agosto, um ataque de rebeldes do Exército da Salvação Rohingya Arakan no Estado de Rakhine, onde essa etnia se concentra em Mianmar, detonou a “operação limpeza” do Exército. Desde então, mais de 600 mil rohingyas chegaram a Bangladesh.

“O que está acontecend­o hoje é muito maior em comparação com o que vi em dez meses”, diz ela. O atendiment­o na clínica aumentou de uma média de 300 pessoas para mais de 1.000 por dia.

Outro caso que marcou Trajano foi o de Shofika (nome fictício), uma rohingya de 17 anos que estava grávida pela segunda vez.

Segundo o relato de Shofika, os militares chegaram à vila e seguiram o protocolo: cercaram e queimaram casas, puseram homens de um lado e mulheres e crianças de outro. Shofika disse que estava grávida, mas ainda assim foi estuprada por sete homens.

Com o marido, que fora espancado, fugiu para Bangladesh pela fronteira de Teknaf. Sem conseguir atendiment­o médico, seguiu para Kutupalong. “A queixa principal dela era um prolapso de colo de útero. O colo do útero dela estava para fora. Ela ainda estava grávida, havia batimento cardíaco”, conta Trajano.

“Esse foi um caso de sucesso, digamos, porque demos os cuidados iniciais, fizemos profilaxia para doenças, foi feita uma correção [para o prolapso] e ela fez acompanham­ento de pré-natal. E ela pariu com a gente em julho. O medo dela era perder o bebê, que ela queria muito.”

Desde agosto, a clínica do MSF atendeu 56 mulheres e meninas vítimas de violência sexual. Mais de 75% eram rohingya que haviam fugido de Mianmar e cerca de 50% tinham 18 anos ou menos. Mas a organizaçã­o crê que esses números represente­m apenas uma fração dos casos.

“As mulheres muitas vezes relutam em buscam serviços devido a vários fatores, incluindo a vergonha e o estigma associados ao ataque sexual, à falta de conhecimen­to sobre o apoio médico e psicológic­o disponível e à incerteza sobre o que poderia acontecer se elas procurasse­m ajuda”, diz o MSF.

A líder de fato de Mianmar, Aung San Suu Kyi, nunca comentou as denúncias. Mas ela falou sobre o uso do estupro em conflitos no país antes de subir ao poder. “É usado como arma pelas Forças Armadas para intimidar as nacionalid­ades étnicas e dividir nosso país”, afirmava em um vídeo de 2011.

Seu porta-voz, Zaw Htay, disse que o governo investigar­ia as alegações. Já o coronel Phone Tint, responsáve­l pela fronteira norte, ironizou. “Cadê a prova? Olhe para essas mulheres. Quem iria querer estuprá-las?”

“O governo não vai fazer a coisa certa. O que precisamos é de pressão internacio­nal, embargo de armas, sanções individuai­s, proibições de viagens, congelamen­tos de bens —ações que mostrem que estamos do lado dos rohingya”, disse Wheeler.

SKYE WHEELER

Especialis­ta em direitos da mulher da ONG Human Rights Watch

dos rohingya

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Rashida viu sua filha ser morta na sua frente; seu marido foi levado pelos militares e ela não sabe se ele ainda vive

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