Folha de S.Paulo

NEM DA ROCINHA

Atual conflito na maior favela do Rio remete à ascensão e queda de traficante preso desde 2011

- FERNANDA MENA

Em 1999, Antônio Francisco Bonfim Lopes, gerente de entrega de revistas à beira de completar 24 anos, subiu o morro da Rocinha, na zona sul carioca, para falar com Lulu, Luciano Barbosa da Silva, então comandante do tráfico na maior favela do Brasil.

Era seu último recurso para sanar a dívida de R$ 20 mil em que havia se afundado desde que a filha de dez meses fora diagnostic­ada com uma doença rara. Como garantia pelo empréstimo que pleiteava, ofereceu o que podia: trabalho e fidelidade.

Voltou para casa como segurança do dono do morro.

Assim Antônio virou Nem, o mais astuto chefe do tráfico da Rocinha, que conseguiu ao mesmo tempo ser respeitado e querido pela comunidade, que o tratava como prefeito informal, incrementa­r o comércio de cocaína como nunca e ainda evitar o desfecho mais trágico e comum entre aqueles que ocuparam seu posto: a morte.

Desde 2005, quando assumiu o comando da favela, Nem adotou como estratégia a corrupção policial para evitar conflitos e o patrocínio de benfeitori­as na comunidade para conquistar simpatia e lealdade entre os moradores.

Segundo o jornalista britânico Misha Glenny, autor de biografia do traficante, Nem pagava propinas diárias a todos os membros de um batalhão da PM. “Ele o fazia por meio de representa­ntes, mas monitorava tudo por telefone. Sabia que a violência era ruim para os negócios”, diz.

Isolada geografica­mente das favelas dominadas por facções rivais e imune aos confrontos com a polícia pela via do suborno, a Rocinha de Nem se tornou uma favela amigável, com índices de violência semelhante­s aos dos bairros da zona sul carioca. Turistas, curiosos e clientes do asfalto aos poucos perderam o medo de circular por suas vielas. E as atividades econômicas florescera­m: as lojas, as biroscas e as bocas de fumo.

Os negócios dariam um salto ainda maior quando Nem e seu parceiro Saulo de Sá Silva montaram uma refinaria de cocaína na favela.

No lugar do produto final, os criminosos agora traziam pasta-base dos países vizinhos direto para a Rocinha. E cada quilo da matéria-prima rendia três quilos de cocaína. Os lucros triplicara­m, e a Rocinha passou a prover 60% da cocaína consumida no Rio de Janeiro, segundo a Polícia Civil. PRIMEIRA DAMA se casaria com Danúbia Rangel, viúva de dois chefes do tráfico do Complexo da Maré. O casal passaria a adotar hábitos caros, como quando contratou o rapper americano Ja Rule para um show na favela.

“Nem mudou de estilo, começou a esbanjar. Parte disso era fruto de egolatria, parte era produto da lógica romana do pão e circo: dê-lhes de comer e dê-lhes celebridad­es para se entreterem”, conta Glenny. Danúbia e Nem se tornaram celebridad­es da Rocinha.

Em 2009, a vontade de usufruir, longe do crime, de suas conquistas fez o traficante tentar forjar a própria morte. Comprou um atestado de óbito e marcou data para o enterro. A farsa foi descoberta pela polícia e frustrou os planos de Nem. Era o início de uma mudança de rumo na sua trajetória de sucesso no tráfico.

Em agosto de 2010, o acaso colocou um bonde da ADA (Amigos do Amigos), facção criminosa da qual Nem faz parte, frente a frente com PMs que não eram do batalhão corrompido pelo traficante. Para fugir do confronto, os criminosos invadiram um hotel de luxo em São Conrado e tomaram hóspedes como reféns.

Pelo telefone, Nem ordenou a seu soldado mais próximo e fiel, Rogério Avelino, o Rogério 157, que todos se entregasse­m para evitar um desastre de proporções internacio­nais. Dito e feito. REBELIÃO ADA buscarem refúgio na Rocinha de Nem.

A dificuldad­e em controlar os novos soldados e os conflitos entre eles e os moradores colocaram forte pressão sobre o traficante, que tentou negociar sua rendição, via intermediá­rios, com o então secretário de Segurança, José Mariano Beltrame. Não deu certo.

Em 2011, Nem foi encontrado no porta-malas de um carro de luxo fora da Rocinha. Glenny se diz convicto de que foi um teatro: Antônio queria mesmo era se livrar da chefia do morro nas vésperas da entrada da UPP, ocorrida poucos dias depois da prisão.

Desde então, a favela vem sendo chefiada por Rogério 157, solto da prisão por um habeas corpus. “Antônio nega que ainda comande o tráfico desde a prisão [em RO], mas eu não posso deixar de notar que sua influência na Rocinha continua muito poderosa”, ressalta o biógrafo britânico.

De acordo com Glenny, o fato de Rogério 157 ter passado a adotar táticas de milícia, como a cobrança de taxas pelo suprimento de gás e pelo serviço de mototáxi, teria precipitad­o o conflito atual. “Nem teria ordenado que Rogério deixasse a Rocinha, e ele se negou a fazê-lo, expulsando Danúbia da favela”, relata.

Segundo o jornalista, enquanto o Exército mantém um cerco à comunidade, Rogério estaria até agora escondido na mata, aguardando um desfecho. Ele relembra que o atual conflito envolve chefes de uma facção, em meio a um colapso financeiro e de segurança pública no Estado e uma crise política nacional. “Ou seja, um coquetel do demônio.” Folha - Por que escrever um livro sobre um traficante de uma favela carioca?

Misha Glenny - Quando fiz “MacMáfia”, livro em que trato do crime organizado global, descobri que o Brasil, ao contrário do senso comum, é grande no cenário de crimes cibernétic­os. Quando fui ao Brasil em 2005 fazer essa investigaç­ão, vi muitas boas histórias desconheci­das fora do país e resolvi voltar em 2011.

Buscava um tema que me permitisse discutir grandes questões do país, como sua enorme desigualda­de econômica, que me convenci ser o motivo pelo qual o Brasil é sempre o país do futuro e nunca do presente.

Explorei diversas possibilid­ades: Amazônia, cresciment­o das igrejas evangélica­s e, claro, tráfico de drogas. Foi quando Nem foi preso de maneira espetacula­r, o que me impression­ou. Como foi sua pesquisa?

Acompanhei tudo o que saiu na mídia sobre o caso, fui para a Rocinha e fiquei surpreso em ver como ele era visto como o diabo no asfalto ao mesmo tempo em que era herói na favela. Gravei 28 horas de entrevista­s com ele no presídio. Como a Rocinha virou o maior varejista de cocaína do Rio?

Por vários motivos. A Rocinha é muito isolada de outras favelas e está perto dos bairros ricos, e Nem percebeu que precisava transforma­r a favela num lugar seguro em que os jovens de Copacabana, Ipanema, Leblon, São Conrado e Gávea pudessem circular livremente para comprar cocaína.

Antônio [Nem] nega que ainda comande o tráfico desde a prisão [em RO], mas não eu posso deixar de notar que sua influência na Rocinha continua

Essa relativa segurança favorecia outros negócios?

Se você olhar o pé da Rocinha, vê a quantidade de estabeleci­mentos. Sob o comando de Nem, virou um centro comercial, abriram vários restaurant­es, até de sushi, e os primeiros bancos se estabelece­ram ali. Havia um ambiente vibrante de empreended­orismo. E as pessoas que subiam o morro para comprar cocaína achavam que aquilo era uma aventura. Ninguém faria isso no Complexo do Alemão. Há solução para a crise atual?

Ela certamente não está no Exército, que funciona apenas como paliativo, além de ser insustentá­vel financeira­mente no médio prazo. Seria preciso restabelec­er um programa de segurança aliado a programas sociais, o que não foi feito no caso da UPP (Unidade de Polícia Pacificado­ra).

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Mascarados, soldados do Exército fazem operação na favela da Rocinha, na zona sul do Rio, desde a última sexta-feira (22), após conflitos com facções
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Reuters - 10.nov.2011 À esq., cartaz de procurado de Rogério 157; à dir., Nem ao ser preso, em novembro de 2011
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