Folha de S.Paulo

Narcisos

- FRANCISCO DAUDT COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: LeãoServa; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

Não basta ao narcísico se admirar, ele também busca ser admirado —é como uma obsessão em seduzir

“AH, CANSEI de falar de mim! Fala um pouco agora você, sobre mim...”

Esses narcisista­s sempre me intrigaram, e isso me levou a ir entendendo uma coisa ou duas sobre eles. A primeira e mais óbvia é que seu maior interesse é a própria imagem. Na Grécia clássica seria aquela refletida na superfície do lago; atualmente se diria que eles são obcecados em sair bem na foto. É verdade que “nada do que é humano nos é estranho”, mas isso é prioridade total em suas vidas.

Tomemos o exemplo do noivo crônico: o cara está casado com a própria mãe, mas sabe que não fica bem na foto ser solteirão aos 40 anos. Então vai arrastando o noivado, e quando a noiva rompe com ele, fica bajulando-a para que ela não o odeie: precisa sair bem na foto.

Um cliente me conta que a mulher lhe deu um presente de 50 anos que nada tinha a ver com ele. “Ela não tem a menor consideraç­ão por mim”. É verdade, mas o curioso é que não há maldade nisso: simplesmen­te ela não o considera porque ele não lhe passa pela cabeça. Ele não mora lá. O presente era caro e ela ia sair bem na foto: era o bastante.

A outra ficou impression­ada com a biblioteca dele. Levou tempo para entender que ele só comprava, mas não lia, livros que o fariam... sair bem na foto, como intelectua­l.

Sim, porque não é a própria pessoa se admirar, apenas. É também buscar ser admirada. É como uma obsessão em seduzir, o que me fez pensar no componente histérico dos narcisista­s: eles querem ser desejados, mas é frequente que quando esse desejo lhes for mostrado, pedindo retorno, eles se escandaliz­em dizendo que “você não entendeu bem, eu só queria ser agradável”. Isso tem ficado claro nos casos de supostos héteros seduzindo gays: eles jogam uma tonelada de charme, e ficam travados (ou indignados) quando finalmente recebem a cantada que buscaram.

Como se forma um narcisista? Em alguns casos é fácil: a pessoa sempre foi muito bonita, desde criança está acostumada a ser gostada e desejada por sua aparência; intui que seu maior capital erótico/afetivo mora nessa beleza, e portanto passa a ter por ela um zelo excessivo. Daí podem derivar dismorfia (gente magra se achando obesa) e hipocondri­a (que Freud classifico­u como neurose narcísica): demasiada atenção em si mesmo.

Outro caso clássico é o dos filhos únicos (se são lindos, então...): é muita atenção sobre eles. Mas vi um caso em que a filha mais nova, desprezada pela mãe que só tinha olhos para o primogênit­o, tomou o irmão como modelo, imitando-o no narcisismo, como a buscar o amor idealizado da mãe que nunca havia sido seu: passou a vida desprezand­o quem a amava (tornando-se com isso idêntica à mãe), pois só queria o amor de quem a desprezava.

E narcisismo tem jeito? Bem, os casos que me chegam têm em comum uma preciosida­de: a pessoa se incomodou de ser assim. Se além disso ela está entre os poucos inteligent­es da espécie humana (o que é uma soma de raridades, convenhamo­s), ela pode usar sua inteligênc­ia —e sua própria vaidade— para aprender a sair da arapuca afetiva e neurótica em que se meteu, ou foi metida.

Mas dá um trabalho... www.franciscod­audt.com.br

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