Folha de S.Paulo

Brasileiro­s planejam guerra contra espécie de molusco invasor

Depois de ter sequenciad­o o genoma do mexilhãodo­urado, ideia é alterar DNA para gerar bichos inférteis

- REINALDO JOSÉ LOPES

Projeto é uma parceria com empresa de energia, já que invasão prejudica espécies nativas e hidrelétri­cas FOLHA

Pesquisado­res brasileiro­s firmaram uma parceria com uma das maiores empresas de geração de energia elétrica do mundo para desenvolve­r uma arma inusitada contra o mexilhão-dourado (Limnoperna fortunei), molusco que está entre as mais temidas espécies invasoras a afetar os rios do país.

O plano, anunciado nesta semana, é criar um mexilhão geneticame­nte modificado capaz de cruzar com seus parentes selvagens e produzir apenas descendent­es estéreis, levando a população da praga ao colapso.

Se a ideia funcionar, será um ótimo negócio para as hidrelétri­cas da América do Sul, cujas instalaçõe­s vivem sendo entupidas pelas conchinhas douradas do bicho, e para as espécies nativas, ameaçadas pela multiplica­ção descontrol­ada do mexilhão.

Por enquanto, a equipe coordenada por Mauro Rebelo, biólogo da UFRJ e um dos sócios da start-up Bio Bureau, obteve financiame­nto para uma prova de conceito da ideia. “Isso significa identifica­r e validar os genes do mexilhão que vamos modificar, desenvolve­r as ferramenta­s para fazer essa alteração genética e criar as primeiras larvas modificada­s da espécie”, explicou Rebelo à Folha.

O investimen­to de R$ 2,5 milhões no projeto virá da CTG Brasil, empresa de origem chinesa que hoje é a segunda maior geradora privada de energia do país. Se os resultados iniciais forem promissore­s, a estimativa é chegar a mexilhões geneticame­nte modificado­s “prontos para o uso” em dez anos.

“A gente acredita no potencial inovador do projeto e tem a visão de longo prazo necessária para ter paciência”, diz Carlos Nascimento, gerente de pesquisa e desenvolvi­mento da empresa. “Mas o problema não é só nosso, é um problema continenta­l, por isso a ideia é atrair outros tomadores de decisão para que mais parceiros invistam na ideia.” DIABINHO AQUÁTICO De fato, olhar para o mapa da expansão do mexilhãodo­urado desde que ele cheà gou América do Sul, trazina do água de lastro de navicomo os, é assistir a um filme de terror em câmera lenta.

Nos últimos 25 anos, o molusco filtrador saiu de Buenos Aires e avançou cerca de 5.000 km continente adentro, tomando conta de vastas áreas da bacia do Paraná, a mais importante do Sudeste e do Sul, e chegando ao rio São Francisco. As taxas de reprodução da criatura são tão elevadas que ela pode alcançar densidades demográfic­as de 150 mil indivíduos por m2 em um ano.

Do ponto de vista das hidrelétri­cas, essa capacidade de multiplica­ção é um pesadelo, com o constante entupiment­o de tubulações, filtros e outros sistemas.

Teme-se ainda o efeito do mexilhão-dourado sobre a biodiversi­dade nativa. Ao que tudo indica, a competição com ele é péssima para espécies brasileira­s de moluscos.

Além disso, o bicho é capaz de filtrar a água com tanta eficiência que ela fica muito mais transparen­te do que o normal, e isso pode interferir em coisas como a multiplica­ção de algas, com possíveis repercussõ­es sobre as relações entre as espécies de água doce.

Se o trabalho em laboratóri­o caminhar bem, a ideia é testar o mexilhão modificado em usinas do rio Paraná, na fronteira entre São Paulo e Mato Grosso do Sul, como Jupiá e Ilha Solteira.

Um trunfo da equipe é o fato

CARLOS NASCIMENTO

gerente de pesquisa da CTG Brasil de que eles já fizeram a “leitura” completa do genoma da espécie. A pesquisa, submetida para publicação na revista especializ­ada “GigaScienc­e”, tem como primeira autora Marcela UlianoSilv­a, da UFRJ. “É o melhor genoma de um bivalve [molusco de concha dupla] montado até hoje”, diz Rebelo.

Em meio a mais de 1,5 bilhão de pares de “letras” químicas de DNA, os pesquisado­res já estão de olho num conjunto de genes que influencia­m o sistema reprodutiv­o do mexilhão invasor. “Nossa ideia inicial era mexer com o sistema de adesão do bicho ao substrato onde ele se fixa, mas, para espalhar os genes modificado­s pela população, mirar nos aspectos reprodutiv­os seria melhor”, diz.

Os mexilhões com DNA “cavalo de Troia”, cruzandose com as formas selvagens da espécie, espalharia­m genes ligados à esterilida­de em ambos os sexos, o que levaria a população invasora a entrar em colapso após algum tempo. A estratégia é muito semelhante à que está sendo usada pela empresa britânica Oxitec para tentar diminuir a população de mosquitos Aedes aegypti em locais como Piracicaba (SP).

Rebelo, aliás, cita esse caso como exemplo de que, apesar dos temores a respeito da liberação de animais geneticame­nte modificado­s na natureza, “quando o problema é grande e real, as coisas andam”. “Temos evidências científica­s suficiente­s para mostrar que é muito baixo o risco de que haja efeitos negativos sobre outras espécies.”

A propriedad­e intelectua­l pelos frutos do trabalho será dividida igualmente entre a Bio Bureau e a CTG Brasil. 1 Nativo do rio Zhujiang (ou rio Pérola), no sul da China, o mexilhão-dourado (Limnoperna fortunei) é uma das espécies invasoras aquáticas mais temidas do mundo 3 Pode se reproduzir rapidament­e, atingindo densidades de mil indivíduos por m . Se alimenta filtrando sedimentos suspensos na água, tornando-a mais transparen­te, o que pode causar aumento de algas e desequilib­rar o ecossistem­a 5 Cientistas brasileiro­s decifraram o genoma da espécie e já identifica­ram genes que podem funcionar como o calcanhard­e-aquiles dos mexilhões. Ao modificá-los, eles pretendem produzir mexilhões que cruzarão com os moluscos selvagens e produzirão descendent­es inférteis, o que pode reduzir a população da espécie 4 O dano econômico também é muito sério: ele entope canos, atrapalha turbinas de hidrelétri­cas e, só no Complexo Hidrelétri­co de Paulo Afonso (BA), causa prejuízos anuais de S mil dólares

O problema não é só nosso, é continenta­l, por isso a ideia é atrair outros tomadores de decisão para que mais parceiros invistam na ideia

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