Cadastro da maconha
O URUGUAI é um país pioneiro. A imprensa tem difundido suas virtudes. Instituiu o divórcio em 1907, setenta anos antes do Brasil. Foi o primeiro da América Latina a dar o direito de voto à mulher, a estabelecer a jornada de oito horas de trabalho e a reconhecer a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Descriminalizou o aborto e a eutanásia. É um paraíso fiscal.
Agora enfrenta o tema do consumo da maconha contra a opinião complacente de 60% da população. A solução uruguaia para a legalização é saudada como modelo de exportação e medida “revolucionária”. É progressista, sem dúvida, quebra tabus, mas duas características deste laboratório geram desconfiança.
O primeiro deles é o caráter estatal da produção. A privatização das atividades econômicas é um movimento aparentemente irreversível e o Uruguai, neste caso, rema contra a maré. Governos não costumam dar conta da educação, da saúde, do transporte, da previdência –deveriam se envolver no plantio e na colheita? A maconha não poderia ser fornecida pela iniciativa privada com controles e concorrência?
Pode ser que o mecanismo funcione em país com 3,4 milhões de habitantes e, por enquanto, 7,3 mil consumidores registrados.
O que causa desconforto é o cadastramento. O interessado se inscreve em banco de dados e fornece a impressão digital, requisito para a aquisição da droga em farmácias. O país ainda tem a ditadura (1973-1985) na memória e promete preservar o sigilo da informação.
Mas a mesma sistemática no Brasil, com a polícia ainda contaminada pela corrupção e autoridades judiciais arbitrárias, ou na Venezuela, governada por ridículos tiranos (além do desastre econômico, da supressão de liberdades públicas, manifestantes são presos ou mortos todos os dias), um “cadastro nacional de maconheiros” é perigoso.
Ou o consumo recreativo da maconha é lícito, como é o consumo recreativo do álcool (causa dependência), ou se mantém o estigma da marginalidade. Políticas de prevenção e normas devem ser implementadas (idade, apresentação de documento, quantidade, teor de THC, agravamento da pena criminal quando o delito é praticado sob os efeitos da droga), mas a mera existência da lista conspira contra o ideal de privacidade. Por que proibir a venda para turistas, estimulando a formação de mercado paralelo? Alguém imaginaria restrições semelhantes para vinho e aguardente? Turismo não é recreação?
O cadastro de usuários é instrumento de vigilância capaz de interferir (ainda que informalmente) em concursos públicos, contratos de trabalho e carreiras políticas. As marcas deixadas pelos polegares podem um dia aparecer.
Em direção oposta, a Suíça, outro paraíso fiscal, autorizou o comércio, em rede de supermercados, de maços de cigarro de maconha industrializados por empresa do ramo do tabaco. Basta ser maior de idade, apresentar documento, o passaporte estrangeiro inclusive.
Venda em farmácia, supermercado ou nas “boas casas do ramo” não faz diferença se o usuário for tratado como consumidor.
A legalização do consumo não atende apenas às expectativas de pessoas que prefeririam estar agasalhadas pela lei. Esvazia prisões. Talvez seja uma chave para desconstruir organizações criminosas.
O cadastro pode interferir em concursos públicos, contratos de trabalho e carreiras políticas
lfcarvalhofilho@uol.com.br