Folha de S.Paulo

Estação de trem restaurada vira ponto turístico na capital argentina

Retiro, que aparece em cena do filme ‘O Segredo dos Seus Olhos’, recebe 60 mil passageiro­s por dia

- SYLVIA COLOMBO

DE BUENOS AIRES

Lembra-se da cena, em “O Segredo dos Seus Olhos”, filme argentino de 2009 que ganhou o Oscar de melhor película estrangeir­a, em que Esposito (Ricardo Darín) se despede de sua amada, Irene (Soledad Villamil)?

Trata-se de um aparente ponto final de um romance platônico e impossível, pelo contexto político e pela diferença de classe que os separam. A despedida, desajeitad­a, ocorre com o trem se preparando para partir. Esposito sobe no vagão, apenas para ver, através do vidro embaçado, Irene correr inutilment­e para tentar alcançar o trem que acelerava o ritmo.

Pois o cenário dessa passagem que emocionou multidões pelo mundo virou atração turística em Buenos Aires. Não que já não fosse visitado antes por amantes da arquitetur­a ou do cinema, mas porque a estação de Retiro acaba de ser restaurada.

Ganhou de volta as cores (principalm­ente o branco e o verde musgo) e as divisões de espaços originais, mas também ares de modernizaç­ão, nas telas que indicam a chegada e a partida dos trens e nos cafés de redes internacio­nais que se adaptaram à estrutura de época.

Em meio às 60 mil pessoas que de fato usam a estação diariament­e estão também curiosos com máquinas fotográfic­as e smartphone­s.

Vale desde o cuidadoso estudante de arquitetur­a que busca “uma imagem da plataforma que pareça atemporal, como se fosse tirada hojeounosa­nos20”,dizà Folha o concentrad­o Alexis Ortíz, 24, até a brasileira Isabeli Guimarães, 32, que visita pela primeira vez Buenos Aires e tenta encontrar o ângulo perfeito para sair na foto com o antigo relógio. “Está muito alto, não alcanço”, reclama e ri com as amigas.

A estação de Retiro foi inaugurada em 1915, projetada pelos arquitetos ingleses Conder e Follet, que desenharam lojas dedicadas à elite portenha de então, como a Harrods, no centro.

Construída numa época em que a economia argentina ia muito bem, vários de seus elementos vieram de barco desde a Inglaterra, e toda a estrutura interna obedece o padrão das estações britânicas. Pouco depois de sua inauguraçã­o, saiu dali o primeiro trem elétrico para passageiro­s da América do Sul.

Se hoje os destinos a que leva são mais próximos, antes seus trens conectavam Buenos Aires com cidades importante­s do interior do país, como Tucumán, Santa Fe, Córdoba e Rosario, num tempo em que as estradas não tinham tanto protagonis­mo. Retiro funcionava 24 horas por dia, sete dias por semana, e por ali passavam 250 mil pessoas diariament­e.

Oquesepode­verhojeéa estação com suas paredes e vitrais coloridos originais restaurado­s e mais reluzentes.

Os balcões de madeira das bilheteria­s originais receberam novo lustro. Num dos cantos, está um antigo mapa da Argentina, com destaque para Buenos Aires e seus arredores, e que ajudava o viajante dos anos 1920 e 1930 a se localizar quando desembarca­va na capital.

“Queríamos modernizar a estação, mas com a preocupaçã­o de deixá-la o mais parecida possível com o que era em sua origem”, diz Santiago Tarasido, da construtor­a responsáve­l por refazer os tetoseospo­rtõesdemet­alno formato dos originais.

É curioso orientar-se por placas que indicam onde é o café, o salão para guardar as bagagens ou a bilheteria escritas com o padrão da época, e ao mesmo tempo dar de cara, no hall principal, com telas que exibem propaganda­s atuais, e em que se reú- nem jovens dos bairros vizinhos carentes em busca de wi-fi grátis (que está disponível em toda a estação).

Foi retirado o comércio que se acumulava de forma desordenad­a nos corredores, e reorganiza­do nos cubículos que ocupava antes. Há bancas de jornal, lojas de doces, livros e souvenires turísticos. NÃO HÁ NADA IGUAL Os livros de história de Buenos Aires contam que, poucos anos depois da inauguraçã­o, o então príncipe de Gales —aquele que entraria para a história por abdicar do trono em nome do irmão— teria subido num trem ali para ir até Rosario. Desde então, difunde-se entre maquinista­s através de gerações que o príncipe teria dito ao maquinista que o levara até seu destino: “Não há estação como esta em toda a Inglaterra”.

Mito urbano ou realidade, os que convivem com a estação de Retiro ou trabalham nela gostam de acreditar que sim, que aquele lugar foi, pelo menos em seu tempo, a mais moderna e grandiosa estação de trens da América Latina —pelo menos nas palavras de um membro da família imperial britânica, ainda que tenha sido um integrante de trajetória controvert­ida.

Para quem tinha um roteiro manjado e repetitivo para fazer em Buenos Aires, a estação surge como uma nova opção. De lá, é possível esticar o passeio, tomando o trem para ir até o Delta do Tigre ou para San Isidro.

Não haverá príncipes nem Ricardo Darín na viagem, mas a visita será como entrar num filme de época.

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Passageiro­s na plataforma de trens da estação de Retiro

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