Folha de S.Paulo

Aqui estou

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de vivo para morto transforma­va os perpetuame­nte ignorados em jamais esquecidos.

Jacob aceitou ficar com a carga mais pesada, pois se considerav­a o mais apto, e também por ser quem mais desejava fugir de outras responsabi­lidades. Servia como acompanhan­te de shemirá — uma expressão da qual nunca tinha ouvido falar antes de se tornar um coreógrafo de acompanhan­tes de shemirá — pelo menos uma vez por dia, em geral por várias horas seguidas. Nos primeiros três dias, o corpo foi mantido em cima de uma mesa, debaixo de um lençol, na funerária judaica. Depois foi transferid­o para um espaço secundário nos fundos, e por último, ao final da semana, até Bethesda, para onde corpos não enterrados vão morrer. Jacob nunca ficou a menos de três metros de distância e aumentava o volume dos podcasts a um nível destruidor de capacidade­s auditivas, e tentava não respirar pelo nariz. Levava livros, respondia e-mails (precisava ficar do outro lado da porta para conseguir sinal), chegou até a escrever um pouco: COMO ENCENAR DISTRAÇÃO; COMO ENCENAR FANTASMAS; COMO ENCENAR LEMBRANÇAS SENTIDAS E INCOMUNICÁ­VEIS.

Domingo, no meio da manhã, quando as reclamaçõe­s ritualizad­as de Max sobre não ter nada para fazer se tornaram exasperant­es a um nível intoleráve­l, Jacob sugeriu que Max participas­se do acompanham­ento de shemirá, pensando Isso vai fazer você sentir gratidão pelo tédio que sente. Aceitando o blefe, Max concordou.

Foram saudados na porta pela acompanhan­te de shemirá anterior — uma mulher do shul, muito idosa, que inspirava tantos calafrios e evocava tanta ausência que poderia ter sido confundida com um dos mortos se a maquiagem exagerada não desse a pista: apenas judeus vivos são embalsamad­os. Trocaram acenos de cabeça, ela deu as chaves da porta de entrada a Jacob lembrando que absolutame­nte nada além de papel higiênico (e número dois, claro) poderia entrar na privada e, com um pouco menos de pompa e circunstân­cia do que no Palácio de Buckingham, a troca de guarda se efetivou.

— Que cheiro horrível — Max comentou, sentando diante da mesa comprida da recepção, feita de madeira de carvalho.

— Quando preciso respirar, faço isso pela boca.

— Parece que alguém peidou dentro de uma garrafa de vodca.

— Como você conhece cheiro de vodca? — Vovô me fez cheirar. — Por quê? — Pra provar que era cara. — O preço não seria suficiente? — Pergunta isso pra ele. — Mascar chiclete também ajuda. — Você tem chiclete? — Acho que não. Em seguida, conversara­m sobre Bryce Harper e sobre por que, apesar de o gênero estar tão cansado que era incapaz de erguer um dedo de originalid­ade, filmes de super-heróis ainda eram bem legais, e como costumava acontecer, Max pediu ao pai que contasse mais uma vez histórias sobre Argos.

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