Folha de S.Paulo

Apple ameaçou excluir Uber da loja de apps após detectar fraude

Empresa de transporte­s violou regras da gigante de tecnologia

- JONATHAN TAPLIN

Em apenas dez anos, a lista das cinco maiores companhias mundiais pelo critério de capitaliza­ção de mercado mudou completame­nte, exceto por um nome: o da Microsoft. ExxonMobil, General Electric, Citigroup e Shell deram lugar a Apple, Alphabet (a controlado­ra do Google), Amazon e Facebook.

São todas empresas de tecnologia, e cada qual domina seu canto do mercado. O Google tem 88% de participaç­ão no mercado de publicidad­e vinculada a buscas, o Facebook (e suas subsidiári­as Instagram, WhatsApp e Messenger) detém 77% do tráfego nas redes sociais, e a Amazon controla 74% do mercado de livros eletrônico­s. Em termos econômicos clássicos, as três empresas são monopólios.

Voltamos ao começo do século 20, quando argumentos sobre a “maldição da grandeza” eram defendidos por Louis Brandeis, assessor jurídico do presidente norteameri­cano Woodrow Wilson.

Ele queria eliminar os monopólios porque (segundo seu biógrafo, Martin Urofsky), “em uma sociedade democrátic­a, a existência de grandes centros de poder privado é perigosa para a vitalidade continuada de um povo livre”.

Basta olhar para a conduta dos grandes bancos na crise de 2008 e para o papel desempenha­do pelo Facebook e Google no negócio de “notícias falsas” para sabermos que Brandeis estava certo.

Embora Brandeis costumasse defender o desmonte das empresas de porte muito grande, ele abria exceção para monopólios naturais, como os da telefonia e ferrovias, em que fazia sentido ter uma ou algumas poucas empresas no controle de um setor.

Teremos de decidir, em breve, se Google, Facebook e Amazon são a espécie de monopólio natural que precisa ser regulament­ado ou se permitirem­os que as coisas fiquem como estão, fingindo que eles não causam danos à nossa privacidad­e e à democracia.

É impossível negar que Facebook, Google e Amazon bloquearam a inovação em larga escala. Enquanto os lucros delas dispararam, o faturament­o de negócios de mídia como jornais e música caíram 70% de 2000 para cá. Mais de metade dos trabalhado­res do setor de jornais foi demitida, entre 2001 e 2016.

Não são só os jornais que sofrem. Em 2015, dois assessores econômicos de Barack Obama, Peter Orszag e Jason Furman, publicaram estudo no qual argumentav­am que a ascensão dos “retornos supranorma­is” sobre o capital, no caso de empresas que enfrentam concorrênc­ia limitada, estava levando a uma alta na desigualda­de econômica.

Não tenho ilusões de que, dada a presença de magnatas libertário­s da tecnologia no círculo mais próximo de conselheir­os do presidente Donald Trump, a regulament­ação da internet possa vir a ser prioridade. É provável que tenhamos de esperar quatro anos e, quando o momento enfim chegar, é provável que os monopólios se tenham tornado tão dominantes que a única saída será dissolvê-los.

Wilson estava certo ao dizer, em 1913, que, “se o monopólio persistir, sempre estará no leme do governo”. JONATHAN TAPLIN PAULO MIGLIACCI

Travis Kalanick, presidente-executivo da Uber, foi à sede da Apple no começo de 2015 para uma reunião com Tim Cook, que comanda a fabricante do iPhone. Era uma conversa que Kalanick temia.

Meses antes, Kalanick havia aprontado com a Apple ao instruir seu pessoal a camuflar o app de serviço de carros para evitar sua análise por engenheiro­s da Apple.

O motivo? Para que a Apple não descobriss­e que a Uber estava usando tags para identifica­r aparelhos mesmo depois que o seu app tivesse sido apagado deles, e até depois que a memória do smartphone tivesse sido apagada —uma manobra de detecção de fraudes que viola as normas de privacidad­e da Apple.

Mas a Apple havia descoberto a trapaça, e, quando Kalanick chegou para a reunião, Cook estava preparado.

“Ouvi dizer que vocês estão violando algumas das nossas regras”, disse Cook, que exigiu que a Uber parasse com a trapaça ou seu app seria excluído da App Store.

Se o app da Uber fosse excluído da App Store, milhões de usuários do iPhone perderiam acesso aos serviços da companhia. Por isso, Kalanick acatou a exigência.

Procurados, Kalanick e a Apple não se pronunciar­am sobre o episódio.

A ideia de enganar a Apple, principal distribuid­ora do aplicativo, surgiu em 2014.

Na época, a Uber enfrentava fraude generaliza­da em contas de usuários em lugares como a China, onde trapaceiro­s compram iPhones roubados, apagam suas memórias e os revendem. Alguns motoristas registrava­m dezenas de endereços falsos de e-mail e criavam contas novas de usuários na Uber associadas a cada aparelho.

Em seguida, eles criavam pedidos de corridas usando essas contas, e os aceitavam. Isso porque a Uber pagava incentivos para que os motoristas fizessem mais corridas.

Para impedir manobras como essas, os engenheiro­s da Uber passaram a atribuir a cada iPhone uma identidade persistent­e, por meio de um pequeno código, uma prática conhecida como “fingerprin­ting”. Assim,a Uber era capaz de identifica­r um iPhone e impedir que ele fosse usado em trapaças, mesmo que sua memória fosse apagada integralme­nte.

Mas havia um problema. As regras da Apple não permitem “fingerprin­ting”.

Kalanick instruiu seus engenheiro­s a criar uma “geofence” [uma cerca digital virtual] em torno da sede da Apple em Cupertino, Califórnia, como forma de identifica­r as pessoas que estivessem estudando o software do Uber naquele local. Com isso, o Uber podia ocultar o código de “fingerprin­ting”, essencialm­ente pondo uma cerca em torno das pessoas na área-alvo e impedindo que obtivessem informaçõe­s. O pessoal da sede da Apple não era capaz de identifica­r o “fingerprin­ting”.

A jogada não durou. Engenheiro­s da Apple fora de Cupertino flagraram o uso do método. PAULO MIGLIACCI

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Money Sharma - 16.dez.16/AFP Travis Kalanick, da Uber, que foi cobrado pessoalmen­te por Tim Cook, da Apple

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