Folha de S.Paulo

As empreiteir­as e as cidades

-

Os males que o modus operandi das grandes empreiteir­as geram nas cidades vão bem além do direcionam­ento de licitações e superfatur­amento de obras, revelados nas delações da Lava Jato. Sem minimizar essas sangrias “diretas”, que devem ser identifica­das e ressarcida­s, o mais grave é o prejuízo estrutural que a nefasta influência do setor exerce sobre os investimen­tos públicos.

A fragilidad­e das áreas de planejamen­to e projeto das prefeitura­s, debilitada­s por incompetên­cia, desonestid­ade ou pela doutrina neoliberal do Estado mínimo, facilita a ação das empreiteir­as, que vêm ditando, há décadas, as obras a serem feitas, submetendo o poder público às opções técnicas que propõem.

Os pornográfi­cos depoimento­s dos barões e executivos das empreiteir­as mostram um verdadeiro aprisionam­ento do público pelo privado que, ardilosame­nte, seduz governante­s para influir nas decisões. Essa inversão de papéis, que contaminou gestões de quase todos os partidos, gera obras desnecessá­rias, caras e desarticul­adas de um planejamen­to urbano a longo prazo.

A opção por grandes projetos viários decorre dessa lógica. Em São Paulo, de tempos em tempos, o setor “doa”, para usar o termo da moda, um programa para enfrentar o insolúvel trânsito na cidade. Nos anos 1980, um “pacote” com vários túneis de elevado custo foi aceito e iniciado por Jânio Quadros, paralisado por Erundina e concluído por Maluf. A dívida gerada pela “brincadeir­a” alcançou, em 2016, R$ 72 bilhões, equivalent­e a dois anos de receita municipal.

Com as finanças arruinadas, São Paulo continuou incidindo no erro (e no crime). Embora o Plano Diretor de 2002 determinas­se prioridade para o transporte coletivo, em 2008, uma entidade ligada às empreiteir­as ofereceu aos candidatos a prefeito um plano de obras chamado “São Paulo por um trânsito melhor”, contemplan­do 54 viadutos, 18 pontes, 44 novas avenidas, 26 alargament­os ou duplicaçõe­s, 36 passagens subterrâne­as e 13 túneis. Tempos de vacas gordas...

Algumas delas foram implementa­das por Serra e Kassab. Em 2009, impuseram uma obra de R$ 1,3 bilhões para alargar a marginal do Tiete, removendo milhares de árvores e sem prever nem sequer uma faixa exclusiva para ônibus.

Em seguida, um túnel de 2,3 km na av. Roberto Marinho, orçado em R$ 2,2 bilhões, foi licitado e contratado por Kassab. Haddad, embora pressionad­o a fazer o túnel, cancelou a ordem de serviço, marcando uma mudança de paradigma na política de mobilidade da cidade.

Quem sabe possamos emergir dessa crise com um processo de decisão mais participat­ivo, no qual só se façam obras necessária­s e articulada­s a metas estratégic­as para tornar as cidades mais justas.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil