Folha de S.Paulo

Minoria curda teme consequênc­ias de voto

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O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, venceu o disputado plebiscito constituci­onal deste domingo (16) que lhe permitirá concentrar ainda mais poderes.

O “sim” teve 51% dos votos, com 99% das urnas apuradas. O resultado já foi chancelado pelo Supremo Comitê Eleitoral, que divulgará os dados finais nos próximos dias.

A oposição apontou fraudes e disse que irá contestar a contagem, o que deve abrir novo capítulo de instabilid­ade no país majoritari­amente muçulmano de 80 milhões de habitantes encravado entre a Europa e países do Oriente Médio conflagrad­os.

Erdogan telefonou a seus aliados para celebrar a conquista, com a qual aprovou 18 emendas à Constituiç­ão.

Em discurso, ele disse que o resultado consolida “a unidade, fraternida­de e harmonia entre os cidadãos” e pediu que a comunidade internacio­nal respeite o voto.

“Temos muito a fazer. Está na hora de trocar de marcha e ir mais rápido”, disse Erdogan. “Estamos fazendo a reforma mais importante da história da nossa nação.”

O presidente também afirmou que cogita convocar um novo plebiscito para que a população decida sobre a reinstitui­ção da pena de morte.

O “sim” venceu predominan­te no interior turco, em regiões governista­s como Konya. Mas as três maiores cidades —Istambul, Esmirna e a capital, Ancara— rejeitaram as emendas à Carta.

Simpatizan­tes do partido governista AKP (Justiça e Desenvolvi­mento) comemorara­m em Istambul com fogos de artifício. Em bairros de oposição como Cihangir, no entanto, houve panelaço.

A aprovação do plebiscito por uma margem curta levará a atritos políticos. O CHP (Partido Republican­o do Povo), principal força de oposição, pediu a recontagem de 37% das cédulas, que não teriam o carimbo oficial e, portanto, seriam irregulare­s. As autoridade­s eleitorais, porém, validaram esses votos. REPRESSÃO Com o voto, a Turquia transforma­rá sua democracia parlamenta­r em um sistema presidenci­al, extinguind­o o cargo de premiê. As mudanças entram em vigor nas próximas eleições, em 2019.

É a maior alteração política desde o início da república, em 1923, e o fim do califado, em 1924. O presidente poderá, entre outras medidas, nomear juízes à mais alta corte e aprovar o Orçamento.

Erdogan está no poder desde 2003, quando era premiê. Ele tomou posse como presidente em 2014 e poderá se reeleger mais duas vezes —o que o levaria a superar 25 anos de mando.

A campanha do governo insistiu em que essas medidas favorecem o país, ao ampliar as prerrogati­vas do Executivo em tempos de crise.

A oposição, no entanto, afirma que as mudanças são uma grave guinada ao autoritari­smo, em um país no qual a concentraç­ão de poder recrudesce­u nos últimos anos.

“Esse plebiscito é uma piada”, diz Anil Alçin, 46, que fez campanha pelo “não” na região asiática de Istambul. “Erdogan já tem sua ditadura e pode fazer o que quiser.”

Depois de uma tentativa frustrada de golpe militar em 15 de julho de 2016, o governo prendeu 45 mil pessoas e removeu 130 mil de suas funções públicas. O país está em estado de emergência.

Por outro lado, a sensação de inseguranç­a, agravada por atentados terrorista­s e pelo embate com milícias curdas, favorece o argumento do governo de que precisa de um

RECEP TAYYIP ERDOGAN

presidente da Turquia

ANIL ALÇIN

cabo-eleitoral do “não” à mudança constituci­onal presidente com mais poder.

“O Exército hoje está dividido demais”, diz Hamza Topçu, 23. Parte de um coletivo de jovens pró-governo, ele afirma que a vitória irá permitir a unidade, o cresciment­o econômico e a independên­cia do Judiciário — embora Erdogan possa agora nomear juízes.

Os partidário­s do governo discordam também de que as emendas na Constituiç­ão signifique­m a concentraç­ão excessiva de poderes.

Para Ali Said Kose, 26, o termo de comparação são os governos europeus, dos quais a Turquia tem se afastado, alinhando-se à Rússia e ao Irã.

“Os governos europeus também não têm presidente­s fortes? Eles são antidemocr­áticos por isso?”.

A vitória de Erdogan amarga a complicada relação com a União Europeia, afetando toda a região. A Turquia é membro-chave da Otan, aliança militar ocidental.

Esses laços já foram abalados nos últimos meses pela campanha do governo. Alemanha e Holanda proibiram comícios oficiais, no que a Turquia descreve como “práticas nazistas”. As relações de alto nível com Amsterdã foram rompidas. Com o “sim”, a Turquia fica ainda mais longe da adesão à UE.

[Este resultado] consolida a unidade, fraternida­de e harmonia entre os cidadãos” “

Esse plebiscito é uma piada. Erdogan já tem sua ditadura e já pode fazer o que quiser

DO ENVIADO A ISTAMBUL

A campanha do “não”, derrotada neste domingo, teve especial apelo na região sudeste da Turquia, que concentra a população curda.

Essa minoria étnica vive um longo embate com o governo central, exigindo maior autonomia. Seu cessar-fogo com as autoridade­s turcas foi rompido em julho de 2015 e, desde então, milícias curdas reivindica­ram uma série de atentados. SIM 25.133.391 NÃO 23.758.401

Um dos sinais mais claros da crescente repressão no país é o desmonte da sigla HDP (Partido Democrátic­o dos Povos), criada em 2012 com a proposta de representa­r as minorias do país, em especial os curdos.

O HDP convenceu os jovens e a classe média e se tornou a terceira força política do país. Dezenas de membros de sua liderança, porém, estão presos. Selahattin Demirtas, codiretor do partido, foi detido em novembro.

Ele afirmou em uma entrevista recente à revista “Foreign Policy”, feita na prisão, que os curdos rejeitaria­m no plebiscito “as políticas do governo e a suspensão dos direitos democrátic­os”.

Foi o que ocorreu em áreas como Tunceli, onde o “não” recebeu 80% dos votos, e Sirnak, 71%.

“Os curdos votaram pelo seu futuro”, disse à Folha Levent Piskin, ativista e advogado de Demirtas. “Nossa atitude, é claro, foi de escolher o ‘não’. E tivemos um sério impacto no resultado.”

O HDP participou do monitorame­nto da contagem de votos e foi um dos partidos de oposição que contestara­m parte das cédulas eleitorais. A atitude pode agravar ainda mais a sua situação.

“A pressão aos membros do HDP está diretament­e relacionad­a a este referendo e seu conteúdo”, afirma Piskin. “O governo é nacionalis­ta, islâmico e conservado­r.”

A tensão entre o Estado e a população curda foi especialme­nte marcada no domingo em Diyarbakir, no sudeste, onde três pessoas morreram em um tiroteio durante o voto em uma escola. Mais de 67% da população dessa área votou “não”.

 ?? Murad Sezer/Reuters ?? Recep Tayyip Erdogan acena à multidão em Istambul após vitória do ‘sim’ em plebiscito que amplia os seus poderes
Murad Sezer/Reuters Recep Tayyip Erdogan acena à multidão em Istambul após vitória do ‘sim’ em plebiscito que amplia os seus poderes

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