ANÁLISE Segunda ‘mãe’ contribuiu com apenas 0,17% dos genes do bebê
Nasceu há cinco meses no México o primeiro bebê gerado por uma técnica que pode permitir que mães com doenças genéticas nas mitocôndrias (usinas energéticas das células) tenham filhos.
O feito, conduzido por médicos dos Estados Unidos, se aproveitou da ausência de legislação específica no país ao sul de sua fronteira. No ano passado, o Reino Unido foi o primeiro país a regulamentar a prática, exatamente para esse tipo de situação.
A descrição científica mais detalhada será feita em outubro, no Congresso Científico da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva. O feito, porém, já foi divulgado pela revista “New Scientist” nesta terça.
De acordo com os pesquisadores, é a primeira vez que um nascimento é gerado com essa técnica com a finalidade de evitar a transmissão da síndrome de Leigh, causada por defeitos nos genes das mitocôndrias.
Entre os sintomas da doença estão irritabilidade, vômito, diarreia, dificuldade em engolir e ganhar peso. A doença progride com perda do controle do movimento, paralisia corporal e dos olhos. A idade do início dos sintomas pode variar conforme a quantidade de mitocôndrias alteradas (há várias centenas de mitocôndrias em cada célula).
Em casos graves, a crianças afetada pode viver até os 6 ou 7 anos de idade —os dois
ADELINO AMARAL
integrante da Câmara Técnica de Reprodução Assistida do CFM primeiros filhos do casal de pais do bebê em questão morreram por causa da doença.
A porcentagem de mitocôndrias defeituosas que representa algum risco para a mãe é de 14% para cima, afirma o médico e geneticista Ciro Martinhago. No caso, a mãe, de 36 anos, tinha 24,5% de mitocôndrias alteradas.
“Nesse caso seria até perigoso ela passar por uma gravidez, que exige que o organismo produza energia para duas pessoas”, opina.
Nesse tipo de doença, a idade da mãe também é importante. É possível que as mitocôndrias afetadas tenham maior capacidade de reprodução, aumentando o risco para a próxima geração. EMBRIÃO O membro da Câmara Técnica de Reprodução Assitida do CFM Adelino Amaral afirma que no país a técnica de transferência de óvulo, apesar de ser baseada em um princípio de mais de 15 anos, ainda é considerada experimental —não há norma que proíba ou autorize a prática.
Segundo ele, e outros médicos ouvidos pela Folha, não há noticia de que algum bebê fruto dessa abordagem tenha nascido no Brasil, apesar de verem com bons olhos a possibilidade de prevenir doenças mitocondriais.
“Esse tipo de turbinagem de óvulo pode até melhorar a qualidade, mas é experimental. Quando a técnica é realmente boa, todo mundo reproduz. E você não vê um número grande de tentativas por aí”, diz Amaral.
No caso do bebê mexicano, cinco embriões progrediram para o estágio posterior, de blastocisto, mas apenas um deles não tinha alterações cromossômicas importantes (como as que geram as síndromes de Down, Patau, Turner ou Kleinefeler).
Um possível desdobramento desse nascimento é a possibilidade de recauchutar óvulos de mulheres mais velhas que estejam enfrentando problemas para engravidar, diz o médico especialista em reprodução assistida Flávio Garcia de Oliveira.
Segundo ele, pode-se pensar que o núcleo da célula, onde está a maior parte do genoma, é afetado pela senilidade do citoplasma, onde estão as mitocôndrias. “O maquinário fica fraco e não consegue cuidar do DNA do núcleo”.
Amaral tem opinião diferente. Para ele, “a carga genética continuaria velha, e o risco de doenças por causa da idade materna continuaria alto”.
Compreende-se a necessidade de resumir uma intervenção biomédica complexa em fórmulas compreensíveis do gênero “primeiro bebê de três pais”, como fez a revista britânica “New Scientist”. Não é bem isso, porém.
A criança teria três progenitores se recebesse genes significativos de todos eles. Com a técnica empregada por John Zhang, a suposta segunda mãe contribui com muito pouco DNA para o bebê, e nada que vá influenciar de modo decisivo o que ele vai se tornar como pessoa.
A intervenção foi feita para evitar uma doença originária de falhas em mitocôndrias, organelas que produzem energia no citoplasma (“recheio”) da célula. O truque é substituir mitocôndrias defeituosas de uma mulher pelas saudáveis de outra.
Mitocôndrias têm seus próprios genes, 37 deles, e é por isso que se fala em duas “mães”. A segunda, contudo, entra com o equivalente a 0,17% do total de genes (22 mil) que servem para formatar um organismo humano.
Além disso, o DNA mitocondrial nada tem a ver com características normalmente associadas com hereditariedade, como temperamento e traços físicos. Os genes que contam para isso ficam longe dela, acomodados nos 46 cromossomos do núcleo.
Não há novidade no expediente de usar mitocôndrias sãs para viabilizar a gravidez. Tampouco é nova a controvérsia sobre isso. Em abril de 2001 a revista “Science” condenou em editorial procedimento similar feito por Jason Barritt em Nova Jersey (EUA).
Antes disso, em São Paulo, o polêmico médico Roger Abdelmassih —hoje cumprindo pena por múltiplos estupros — já empregava injeções de citoplasma para “rejuvenescer” óvulos de clientes com dificuldade para engravidar.
“é nova, o princípio tem mais de 15 anos. Talvez ela melhore a qualidade dos óvulos e embriões, mas as sociedades médicas ainda a consideram experimental