Hilda Hilst se transmuta em dança por meio de álbum de Zeca Baleiro
Livro de 1974 sobre amor que nunca se concretizou foi musicado há 11 anos pelo maranhense
Em 2007, músico iniciou colaboração com o grupo Primeiro Ato, que fez com que bailarinos enviassem cartas a amores ausentes
Hilda Hilst escreveu, Zeca Baleiro musicou e agora o grupo mineiro Primeiro Ato vai dançar os versos do álbum “Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé - De Ariana para Dionísio”, que parte do livro “Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão”.
Batizado “Três Luas”, o espetáculo que estreia em São Paulo neste sábado (23) dá movimento aos poemas escritos por Hilda na Casa do Sol, em Campinas, refúgio fundado pela escritora em 1965. Foi ali que, em 2001, ela recebeu Zeca Baleiro para propor que ele musicasse seus versos.
“Trabalhar com Hilda foi um sonho, era como dividir o palco com Bob Dylan”, lembra o músico maranhense.
Até essa história virar dança, passaram-se 15 anos. Baleiro lançou o disco baseado na obra em 2005 e, dois anos depois, iniciou a parceria com Suely Machado, 62, diretora do Primeiro Ato. Foram nove anos até o grupo conseguir transformar a poesia feita música em linguagem corporal.
No livro, Hilda (1930-2004) fala de um amor que não ocorreu. O nome e o sobrenome desta paixão estão nas iniciais do título: são do jornalista Júlio de Mesquita Neto (1922-96). Diz-se que ele foi um dos dois únicos homens que Hilda desejou e nunca teve —o outro era o ator Marlon Brando.
Mas Suely não queria ficar apenas na experiência da escritora. “Pedi aos bailarinos que mandassem uma carta para um amor ausente, dizendo o que queriam ter dito, mas não falaram, ou que disseram, mas preferiam não ter dito.”
Cada bailarino trabalhou com frases de suas próprias cartas e versos da autora. O diálogo entre memórias individuais e a poesia de Hilda se materializou em movimento. Para Baleiro, foi uma surpresa: “Até ver a peça, não tinha pensadoemrelaçõesentreHilda e dança. Tem tudo a ver”.
O poema que Suely escolheu para voltar ao palco depois de 20 anos sem se apresentar é testemunho: “Minha Casa é guardiã de meu corpo/ E protetora de todas minhas ardências/ E transmuta em palavra/ Paixão e veemência”.
Esses versos foram cantados por Maria Bethânia no CD lançado por Baleiro, mas, para o espetáculo, foi regravada pelo músico com um novo arranjo de violão e gaita.
Combina com a atmosfera lírica e leve da montagem, com figurinos cheios de transparências inspirados na fase pré-Casa do Sol, quando a escritora gostava de se vestir com roupas de alta-costura.
“Na criação artística, já tem muita gente querendo chocar, mas ninguém se choca com mais nada. Quisemos dar este tom de delicadeza. Coisas que estamos precisando mais do que nunca”, afirma Suely.