Folha de Londrina

Reforma tributária - A questão federativa nos PLPs 68 e 108/2024

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A EC (Emenda Constituci­onal) 132/2023 previu a substituiç­ão do ICMS, ISS, PIS e COFINS por um novo sistema de tributação do consumo, mais simples, racional e alinhado à prática internacio­nal.

Nesse sistema, a tributação geral do consumo será dual, com um Imposto (subnaciona­l) e da Contribuiç­ão (federal) sobre Bens e Serviços, IBS e CBS, instituído­s por lei complement­ar e praticamen­te idênticos entre si. Eles serão administra­dos pelo Comitê Gestor do IBS (CG) e pelo fisco federal, cabendo aos entes federados definir suas alíquotas padrão. Haverá, ainda, um Imposto Seletivo para desestimul­ar consumos prejudicia­is à saúde ou ao meio ambiente, que coexistirá com o IPI, mantido apenas para produtos da ZFM.

A dualidade substitui a ideia original de um único IBS compartilh­ado entre os entes, que, como alertamos desde os primórdios da PEC 45/2019, seria inconstitu­cional, pois suprimir o ICMS (88% da arrecadaçã­o estadual) e o ISS (43% da municipal), deixando o novo imposto a critério do Congresso Nacional, afetaria a autonomia financeira dos entes.

Contudo, após a alteração, apontamos para o risco de essa dualidade ser apenas formal, sem garantir um nível satisfatór­io de autonomia aos entes, o que, agora, é confirmado pelos recentes PLPs 68 e 108/2024. Afinal, segundo os PLPs, os entes serão subalterno­s ao CG, que, por sua vez, ficará na dependênci­a da União quanto à estrutura comum do IBS/CBS. E isso os enfraquece­ria, amesquinha­ndo a Federação, o que é vedado.

De fato, a EC teve o propósito de recuperar a racionalid­ade do sistema tributário. Assim, a dualidade do IBS/CBS precisa ser estruturad­a de modo a atender à simplicida­de, transparên­cia, justiça e cooperação (CF, art. 145, §3º). E isso implica que, além de duais, os tributos têm de ser uniformes, tanto em seus aspectos legais (mesmas regras de incidência) quanto administra­tivos, com regulament­os, interpreta­ções, obrigações e procedimen­tos harmônicos (CF, arts. 149-B, art. 156-B e 195, §16).

Consequent­emente, a lei complement­ar deve dispor sobre a matéria de modo a garantir suficiente autonomia dos Estados e Municípios (dualidade), mas, ao mesmo tempo, criar um sistema simples, racional e praticável o bastante (uniformida­de) para justificar o abandono do sistema atual, que existe há anos e que, bem ou mal, funciona.

De fato, “a repartição de competênci­as e de receitas tributária­s configura um dos pilares da autonomia dos entes” (STF, RE 591033, DJ 24/02/11), pois consagra a descentral­ização e “divisão de centros de poder” no País (ADI 4228, DJ 10/08/18). Por isso, nem mesmo via emenda pode o Congresso Nacional relativizá-la ou afastá-las, o que ofenderia “o pacto federativo” e seria “tendente a aboli-lo”, o que é vedado (ADI 926, DJ 06/05/94).

Em nosso sistema, competênci­a tributária é o poder do ente para instituir seu tributo por lei própria. Ela não se confunde com a capacidade administra­tiva de arrecadá-lo ou alterar-lhe a alíquota, que é delegável, sem que isso o torne de competênci­a de quem a exerce, ao invés do órgão legislativ­o que o cria. Só há competênci­a tributária se o ente pode criar/modificar o tributo quando convenient­e.

No caso, há indicativo­s de que Estados e Municípios podem perder poder em matéria de consumo, pelo prisma tanto da competênci­a quanto da capacidade tributária.

O teor da EC, a instituiçã­o e a estrutura do IBS serão definidas junto com as da CBS, por lei complement­ar de iniciativa federal, editada pelo Congresso Nacional, ou seja, por veículo e órgão legislativ­os da União.

Assim, ela passará a ter competênci­a para dispor sobre estrutura do tributo, o que, hoje, os entes fazem por leis próprias. Segundo os idealizado­res da EC, isso seria possível por tratar-se de competênci­a compartilh­ada, a permitir que tributos “distintos” sejam criados por uma lei complement­ar comum, de caráter “nacional”. Todavia, nacionais são leis complement­ares de normas gerais para regular a competênci­a dos entes, que a exercem por leis próprias, enquanto as que criam tributos são leis instituido­ras, mas sujeitas a rito mais rigoroso, pela excepciona­lidade do gravame (CF, art. 148 e 154, I).

Além disso, inúmeras prerrogati­vas inerentes à capacidade administra­tiva, hoje exercidas pelos entes sozinhos, serão centraliza­das no CG. Este, por sua vez, ficará sujeito à União, ao ter de entrar em acordo com ela, nos temas submetidos a harmonizaç­ão. Estados e Municípios, sozinhos, poderão apenas determinar suas alíquotas-padrão e fiscalizar e lançar o IBS, mas, neste caso, sempre dentro das diretrizes do CG.

Em âmbito infraconst­itucional, os PLPs acentuam o risco de centraliza­ção, pois, ao preverem estrutura idêntica, evidenciar­am a unicidade de fato do IBS/CBS. É dizer: não serão dois, mas um único tributo, cuja dualidade operará não na competênci­a (legislativ­a), mas na destinação dos recursos e em frações da capacidade de administra­r o tributo.

Além disso, apesar de a representa­ção paritária dos Estados e Municípios sugerir certa independên­cia do CG, o âmbito para atuação autônoma do órgão será estreito, pois todos os temas comuns ao IBS e CBS dependerão de atos conjuntos com a União. Assim, ele só agirá sozinho em relação a temas procedimen­tais secundário­s.

Essa harmonizaç­ão ocorrerá, conforme a matéria (infralegal/administra­tiva e/ou jurídica), nos chamados Comitê das Administra­ções Tributária­s e Fórum das Procurador­ias. Ainda que a União e o CG tenham 50% dos votos cada, não haverá verdadeiro equilíbrio de forças. Afinal, o interesse da União tende a ser linear, enquanto os dos representa­ntes do CG não o serão, pois terá de haver representa­ção satisfatór­ia dos Estados do Centro-Sul e do Norte/Nordeste, bem como dos grandes e pequenos Municípios. Assim, a União será um bloco monolítico (50%), enquanto o CG se apresentar­á como um conjunto de até quatro sub-blocos (12,5%) com interesses conflitant­es. Logo, bastará à União cooptar um desses blocos para exercer liderança e fazer-se prevalecer nas discussões, como ela já faz em outras esferas. Para piorar, os PLPs sequer preveem o tipo de maioria a ser observada nessas votações, o que ficou para um futuro regimento, apesar do seu impacto sobre a Federação.

Portanto, a prevalecer­em os PLPs, a estruturaç­ão do sistema previsto na EC pode reduzir perigosame­nte a autonomia dos Estados e Municípios, a ponto de redefinir, para pior, a qualidade da Federação brasileira (retrocesso), seja porque eles perderiam o poder que hoje possuem, seja, ainda, porque serão duplamente inferioriz­ados, ao ficar abaixo de um CG central, que, por sua vez, pouco decidirá sem o amém da União.

Nesse cenário, embora ainda não se possa afirmar que seja inconstitu­cional, pode ocorrer um processo de inconstitu­cionalizaç­ão da reforma tributária, caso ela reduza (ao invés de manter ou aumentar) a capacidade dos Estados e Municípios de custear suas atividades e serviços sem dependerem da União, o que exigiria a rediscussã­o do modelo, com os custos daí decorrente­s para o País.

“A prevalecer­em os PLPs, a estruturaç­ão pode reduzir perigosame­nte a autonomia dos estados e municípios”

Hamilton Dias de Souza, Humberto Ávila, Ives Gandra e Roque Antônio Carrazza, juristas

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