Folha de Londrina

Um padre comum

- Bernardo Pires Küster é professor e jornalista.

Se o não é aquilo que retumba no mais profundo pântano do inferno, como diziam os medievais, é também verdade que o mais veemente ato de entrega, em oposição à recusa absoluta, repousa plácido no mais alto trono dos céus. É o contraste mais claro na consciênci­a do homem comum: o belo arcanjo sem chance de redenção foi aquele que, não podendo, quis subir ao mais alto céu para tomar, por orgulho, o lugar do Altíssimo; o próprio Altíssimo, por outro lado, fez pouco caso de Sua divindade e, humilhando-se, desceu feito orvalho dos céus para encarnar-se na baixa criatura.

A Virgem Maria, digna de profunda veneração, por Seu sim mais incomparáv­el, aceitou que Deus nEla fizesse morada. Seu esposo, glorioso São José, teve o sim digno de homem: silente e convicto da missão que lhe fora outorgada.

Da mesma maneira, entre contradiçõ­es e convicções, Pedro, antes de ser São, anunciava quase diariament­e, como profeta, o seu sim a Deus, cuja entrega dependeu sempre mais de Cristo que de Pedro. “Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça”, disse o Senhor a ele.

O sacerdócio, mãos de Cristo, é por sua natureza um grande sim de Deus para o homens. Não é preta afinal a fardelagem que reveste nossos padres? É escura e, aparenteme­nte, lúgubre porque evoca, é claro, um funeral daquele homem; toda ordenação é também uma inumação. É o sim total ao chamado para ser meio da graça de Deus e morrer para o mundo, pois “todo aquele que quiser ser amigo deste mundo, constitui-se inimigo de Deus” (S. Tiago 4,4).

Não devemos chamar esse homem apenas pelo seu nome da certidão de nascimento, pois padre não é título, mas designação de natureza. Chamem-no de Padre… Antônio Fiori. Este é seu nome.

Seu sim a Deus possui duas marcas profundas: a ordem sacerdotal e a vocação religiosa palotina. Padre Fiori é um presbítero comum. E este fato é absolutame­nte incomum. Celebrar a mesma missa todo o santo dia, absolver os mesmos dez pecados, vestir a mesma estola, acender a mesma chama da vela, pronunciar insistente­mente as mesmas palavras, ajoelhar-se precisamen­te nos mesmos momentos, olhar frequentem­ente para as mesmas pessoas, unir pessoas diferentes numa igual cerimônia e educá-las nos mesmos ensinament­os, insistir na permanênci­a dos mesmos dogmas, acreditar no mesmo pão, beber o mesmo vinho, abrir-se ao Criador na liturgia das horas sempre… nas mesmas horas; recorrer aos mesmos santos, aos mesmos anjos, à mesma Senhora Nossa, ao mesmo Nosso Senhor, repetir o mesmo sacrifício, rezar ao mesmo Deus e amar atrevidame­nte o mesmo Amor.

Cinquenta anos. Dia e noite, na paz e na guerra, da alegria do batismo à tristeza das exéquias. Cinquenta anos vivendo a serviço da mesma Igreja, da mesma fé. Cinquenta anos esforçando-se, como ele mesmo diz, para fazer de cada sacramento celebrado um sacramento único, lançando fora o automatism­o e a banalidade, algo esperado a esta altura da vida. Repetir as mesmas coisas, sejam atos ou palavras, sem transformá-las num vazio é a missão do padre, é o seu papel exigido por Deus, é sua obrigação, sua cruz e também sua glória.

Não se tem notícia de o Padre Fiori ter-se entregado à falta de piedade em suas ações. As sobrancelh­as arqueadas, olhos fixos, gestos lentos, palavras pinçadas de sua imensa biblioteca na memória, cada hóstia consagrada é entregue quase com ciúmes ao fiel, como um delicado pedaço do céu. Reacender a caridade: este é um dos lemas de São Vicente Pallotti. E a caridade só pode ser reacesa como a vela da crisma é acesa no círio pascal: na fonte de luz, o próprio seio do amor divino; a vida íntima de oração e comunhão com o Bom Deus. Quantos já não receberam suas mensagens de madrugada, quando ele, rezando, lembra-se de alguém, envia um consolo e uma orientação paterna?

Padre Fiori certamente é um padre comum. E repito: não há nada de mais extraordin­ário que um padre comum que insista em ser padre. Um padre. Um pai, principalm­ente quando o mundo em volta induz ao contrário. As mesmas coisas sagradas repetidas como se fossem sempre novas é, na terra, o autógrafo da eternidade.

Obrigado, padre Fiori, nosso padre Antonio Fiori, por insistir em ser nosso pároco de aldeia, esse padre inesperada­mente comum e inexplicav­elmente excepciona­l. Que o Sagrado Coração de Jesus possa sempre manter o teu coração semelhante ao dEle: fiel, piedoso, sóbrio, vivo e, claro, não poderia ser esquecido, sempre alegre, porque “a alegria do Senhor é a tua força” desde que você disse sim a Deus.

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