O paradoxo do esquecimento
O escritor argentino Ernesto Sabato lançou, em 1948, o clássico “O Túnel”. De início, Juan Pablo Castel, o protagonista, deixa aos leitores uma dose bruta de sabedoria: estão muito equivocados aqueles que dizem haver nos tempos passados menos acontecimentos ruins – a questão é que temos, nós, indecifráveis humanos, o hábito de colecionar esquecimentos.
Sabato garante que essa obsessão de esquecer é uma característica positiva dos indivíduos. Enfatiza, portanto, a ideia de que devemos ser capazes de perdoar, apagar registros e dar a volta por cima. Bem diferente dessa virtude, vigoraria entre os espíritos modernos um enorme ressentimento. O inferno seriam tão somente os outros. O ressentido, nesses termos, é aquele que nega ter parte em suas próprias frustrações, atribuindo a diferentes sujeitos, grupos ou instituições sociais a responsabilidade por sua infelicidade.
A lembrança, ensina a História, só é tarefa enriquecedora se trouxer consigo a exigência da autocrítica. Apontar o dedo para a outra margem do rio e dizer que “os do lado de lá” são os únicos culpados por tudo que há de ruim na vida (na minha vida, principalmente), além de cômodo, é indolor. Há, entretanto – para além da visível ignorância –, um traço cultural de mau-caratismo nisso.
É de 1928 o livro “Macunaíma”, de Mario de Andrade, cujo subtítulo sempre dá o que pensar: “o herói sem nenhum caráter”. O Brasil ainda não conhecia alguns dos livros mais importantes de sua interpretação sociocultural, como “Raízes do Brasil” (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, e “Formação do Brasil Contemporâneo” (1942), de Caio Prado Jr. Apesar do aspecto pioneiro de “Os Sertões” (1902), obra monumental em que Euclides da Cunha traça um relato histórico impressionante sobre uma eterna quase-nação forjada na violência e na produção incessante da desigualdade e da mentira, “Macunaíma” pode ser considerada obra inaugural de um certo jeito de compreender o país.
A ausência de caráter do herói – uma espécie de espelho de todos os brasileiros – não é por ser ele oportunista, ruidoso ou covarde. O não caráter de Macunaíma se dá pelo fato de ele não se prender a nada nem ninguém; não defender ideias nem valores. No fundo, a preguiça crônica de Macunaíma é a de plantar vida, fortalecer raízes, organizar-se em torno de um projeto de existência comum. Interessa-lhe o momento. Acatar as imposições da moda, em seu incompreensível e veloz curso, é tudo que vislumbra. E ainda assim, tomado de preguiça.
A atitude macunaímica é a de não ter muito de que se lembrar. Assim, na fluidez do tempo, faz-se possível culpar aqueles que estão fora, ausentes, “do outro lado do rio”.
“O Túnel” e “Macunaíma”, obras da primeira metade do século 20, dão algumas pistas para entender esse caráter autoritário que preenche a vida contemporânea, na qual líderes bestiais prometem o novo mesmo sendo eles mesmos um produto irretocável daquilo que há de mais caduco e podre.
Ai, que preguiça!
Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL cidadefutura@folhadelondrina.com.br