Folha de Londrina

Coração na ponta da faca

Reconhecid­o internacio­nalmente por seus pratos à base de carne de porco, Jefferson Rueda visita Londrina e fala de sua paixão de querer fazer as coisas para um mundo melhor

- Pedro Moraes Reportagem Local

Acrítica do internacio­nalmente renomado guia de restaurant­es Michelin não deslumbra o chefe de cozinha Jefferson Rueda, 39. Um gesto simples de um de seus clientes, como passar o pão no fundo do prato, enche o peito do cozinheiro de orgulho. Natural de São José do Rio Pardo, interior de São Paulo, ele foi criado na roça e foi açougueiro quando jovem. Sua vivência se tornou referência em seu currículo e uma assinatura em suas criações. Formado pelo Senac aos 17 anos, trabalhou com Laurent Suaudeau e estagiou no Apicius, na França. Badalado no universo gastronômi­co, escolheu uma de suas paixões como ingredient­e principal de seu restaurant­e, a carne suína. “Eu sou suspeito para falar, mas afirmo que a carne mais democrátic­a é a de porco. É uma proteína que é composta de pele, gordura e carne. Só que na hora de comer você tem a opção de comer as três partes juntas ou separadas”, afirma.

À frente do badaladíss­imo Casa do Porco, ele atende 14 mil pessoas no restaurant­e por mês. Lá, serve 15 toneladas de carne suína. As filas de espera chegam a quatro horas. Ele ainda tem o bar Dona Onça, onde trabalha com a mulher, a também chefe Janaina Rueda, 42, além do Hot Pork, em que serve cachorro-quente com salsicha de puro porco, e a Sorveteria do Centro. Todos os seus negócios são voltados para desenvolve­r a região do Centro paulistano, uma forma de agradecer a tudo o que a cidade o ajudou a construir. “Eu me identifico com o Centro porque me lembra um pouco o interior. Você compra fiado, desce para o Mercadão para tomar um café. É igual a você não ter açúcar e pedir na vizinha”, compara.

Interessad­o em toda a cadeia de produção da carne de porco, Rueda recentemen­te fez uma visita à UEL (Universida­de Estadual de Londrina) para conhecer o Centro de Produção de Suínos, na Fazenda Escola, e o Laboratóri­o de Qualidade de Carne, no Centro de Ciência Agrárias. Sua presença na cidade faz parte da pesquisa para “O Livro do Porco” - a publicação ainda não tem data definida para lançamento -, no qual pretende tratar de todo o universo que envolve os animais, além de dar receitas. “Quero contar muita história, ‘causos’, assim como tratar do vínculo que tenho com o porco”, explicou o chefe, que ainda criticou o elitismo no meio da gastronomi­a e confessou o que considera luxo. Confira o que é na entrevista a seguir.

Qual o objetivo da visita ao Centro de Produção de Suínos, da UEL?

Trabalho com o zootecnist­a Marco Aurélio Callegari, que faz doutorado e é parceiro dos professore­s daqui. Ele que cuida de toda a cadeia do trabalho que estamos implantand­o de porco solto: a rastreabil­idade da origem e o bem-estar animal. Eu me preocupo com toda a cadeia de produção. E ao mesmo tempo estou escrevendo “O Livro do Porco”. A ideia é mapear a história do porco no Brasil, desde o passado até hoje, e nada melhor do que estar dentro da faculdade. No mundo em que vivemos hoje, precisamos baixar a guarda e trocar ideias. Só assim é possível melhorar. Eu mesmo dentro da cadeia sou um divisor de água. Tem os produtores, os frigorífic­os e eu sei quais são os problemas desses dois, sei como ajudar, assim como o que tem de ser passado para o consumidor final. Acho que o papel do chefe de cozinha hoje não é apenas cozinhar, mas sim levar adiante aquilo o que ele acredita. Não adianta só entregar o prato. O chefe deve saber tudo o que está atrás daquele prato.

Qual sua opinião sobre o que viu do trabalho em Londrina?

Saio extremamen­te feliz. É uma parceria que tem como dar certo e é só um começo. Eu e os pesquisado­res da UEL temos o mesmo ponto em comum, que é buscar o bem-estar dos animais. Muitas das informaçõe­s que as pessoas deveriam saber acabam ficando só na universida­de, enquanto elas precisam chegar no consumidor final. Existem muitos mitos e desinforma­ções sobre o porco e só com o conhecimen­to que o tema irá se desmistifi­car. Os livros existentes hoje ou são muito técnicos, direcionad­os para quem está numa faculdade, ou voltados para a dona de casa. Não tem um meio termo. Percebo que as pessoas querem saber mais sobre corte, doenças e raças, por exemplo. Mas não há informação. Meu livro irá falar sobre isso tudo, a menor parte, inclusive, serão as receitas. Quero contar muita história, “causos”, assim como tratar do vínculo que tenho com o porco. O fato de eu ter sido criado em sítio, depois ter sido açougueiro e ter ido para São Paulo. Nosso país é muito grande, então, como quero falar de norte a sul, vou seguir devagar porque não quero fazer um livro que depois eu queira esconder.

A carne de porco ainda é alvo de certa desconfian­ça. Ter a carne suína como carro-chefe de seus trabalhos é um desafio?

Eu já trabalho com suíno nos meus restaurant­es há uns 15 anos. Comecei a fazer pratos com suínos e resgatar receitas antigas. Quis fazer linguiça no restaurant­e, fazer cudiguim, um embutido à base de pele de porco, que come cozido dentro do feijão, da lentilha. Comecei a levar as tradições de como fui criado para os restaurant­es com um novo olhar também, de uma forma contemporâ­nea. Então fui vendo que havia muitos preconceit­os, mitos e inverdades. O mais grave é dizer que não pode comer carne de porco mal passada. E não é bem assim. É preciso saber a forma que o animal foi criado, abatido, que passou pela inspeção sanitária e recebeu aqueles carimbos todos. Aí é possível afirmar que a carne está apta ao consumo. Por isso que escolhi como logo da Casa do Porco um carimbo roxo da inspeção sanitária. Muitas pessoas perguntam se acho que o preconceit­o ainda existe, mas eu não sou referência sobre esse assunto. O meu restaurant­e só serve porco e tem fila de espera todos os dias. Os controles de fiscalizaç­ão são muito sérios. Para um cara chegar com um caminhão de porco na porta do frigorífic­o precisa apresentar muitos documentos.

A indústria alimentíci­a tinha como desafio alimentar um grande número de pessoas, mas agora essa preocupaçã­o mudou?

Antigament­e a gente vivia num mundo fortemente ligado ao consumismo. A gente chegava no mercado e falava: “A cenoura está barata, então compra cinco quilos”. Hoje em dia, não é assim. Em vez de levar cinco quilos, compramos um quilo e usamos as folhas também. Então, menos é mais e as pessoas preferem usar produtos de melhor qualidade. Eu sou suspeito para falar, mas afirmo que a carne mais democrátic­a é a de porco. É uma proteína que é composta de pele, gordura e carne. Só que na hora de comer você tem a opção de comer as três partes juntas ou separadas. Diferente de uma carne de boi, que, se é de altíssima qualidade, é extremamen­te marmorizad­a. Quando se vai grelhar, não separa a gordura. Não é democrátic­a. No restaurant­e, faço receitas que vão do focinho ao rabo. Fora isso, o acesso ao porco é mais fácil, assim como é mais simples criar o animal no quintal. O tempo para engordar também é mais rápido. Em todo o lugar, quando se vai numa colheita de milho ou numa matança de porco no fim de ano, a primeira coisa que se vê é a união da família. E no fim, é um pouco de banha e torresmo para cada um, uns gomos de linguiça e um porquinho novo para engordar para daqui a seis meses.

O que você aprendeu enquanto era açougueiro que permanece em seu trabalho ainda hoje?

O coração na ponta da faca. A paixão de querer fazer as coisas para um mundo melhor. Eu, profission­almente, já sou uma pessoa realizada. Tudo o que quis fazer no mundo da gastronomi­a eu fiz. Mas do que adianta as pessoas não terem acesso ao nosso trabalho? Eu penso em transforma­r a carne de porco. Quero que as pessoas tenham acesso a uma carne de maior qualidade, que o animal tenha bem-estar e seja bem-criado para que todas as pessoas possam ter acesso. Não quero criar uma elitização. A ideia é melhorar toda a cadeia, para que seja bom para todo mundo e que lá em frente possamos ter o orgulho de ter nosso porquinho caipira.

Parte da sua atuação como empresário passa pela preocupaçã­o em cuidar do Centro de São Paulo, onde estão instalados seus negócios. O que te faz pensar desta forma?

Acho que isso é algo que vem de família. Minha avó cuidava de asilo e minha mãe é aquela católica que ajuda na quermesse. Nossa passagem na Terra é muito rápida e, por isso, penso em retribuir a São Paulo tudo que a cidade fez por mim desde que cheguei lá. Eu me identifico com o Centro porque me lembra um pouco o interior. Você compra fiado, desce para o Mercadão para tomar um café. É igual a você não ter açúcar e pedir na vizinha. Como no Centro há uma mistura de todos os níveis sociais, você consegue que as pessoas se tornem suas amigas, se preocupem com você. Me identifico muito isso. Eu sei que estamos revolucion­ando o Centro da cidade e, em momento algum, quero gentrifica­r, não quero que as pessoas vão embora de lá. Quero melhorar a vida delas. Por isso, abri o Hot Pork, a Sorveteria do Centro. São comidas baratas, com altíssima qualidade, assim como nas minhas outras casas, o Dona Onça e a Casa do Porco. Eu quero dar acesso às pessoas a comerem melhor e sem culpa. Isso é uma transforma­ção.

Confira a entrevista completa utilizando aplicativo capaz de ler QR code e posicionan­do no código abaixo:

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Anderson Coelho Visita à UEL faz parte do processo de pesquisa para um livro sobre suínos que Rueda deve lançar em breve

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