Folha de Londrina

CÉLIA MUSILLI

Um temporal, como há muito não se via, pôs à prova a maior árvore do Bosque

- Celia.musilli@gmail.com

No centro de Londrina, um ribombar de trovões me acordou como se o mundo estivesse acabando.

A madrugada de quinta-feira (22) foi de tempestade em Londrina. No centro, um ribombar de trovões me acordou como se o mundo estivesse acabando. No Bosque, a velha peroba, que tem a altura dos prédios, reagiu ao vento balançando os galhos mais altos. O tronco, forte como sua memória, permaneceu firme. Nada tira o sossego da árvore que se avizinha da minha janela como os edifícios em volta.

Sempre que chove observo a peroba, sei que as grandes árvores atraem raios, mas nunca vi um que a ameaçasse. Ela deve estar ali há mais de cem anos. Essas velhas gigantes guardam tanta história vegetal e humana que são um verdadeiro registro do passado que chegou ao presente e deve alcançar o futuro, deixando todos nós para trás.

Essa árvore já passou por muitas tempestade­s, desde quando era um broto num território de perobas e recebia as águas barrentas que a fertilizar­am. Além das chuvas, já acolheu gerações de pássaros e insetos, ofereceu seu tronco como guia para as formigas e para os olhos de quem quer olhar o céu através de um caminho enfolhado, que nunca perde o rumo.

A sombra do Bosque, nos anos 1940, serviu a muitos casais. Meus pais namoravam ali quando seu Antonio - relojoeiro que chegou à cidade ao fim da década de 30 - quis mostrar Londrina à minha mãe e escolheu passear no Bosque. Minha mãe gostou de tudo e só se assustou com os lagartos que eram comuns por aqui e um dia, trancada em casa até a hora de meu pai voltar do trabalho, disse que tinha visto “um jacaré no quintal.” A confusão nos fez rir por décadas.

De todas as memórias da peroba, uma das mais insistente­s deve ser a das tempestade­s, que ela percebe mais próxima que as outras árvores. Na última quinta, no meio da chuva, seus galhos rangiam como um eterno balanço de crianças. Imaginei seu diálogo com as árvores pequenas: “Fique firme aí.” Seu porte de rainha resplandec­ia aos raios, as trovoadas espantavam as pombas, geralmente assustadas com rojões, que viram um espetáculo tão grandioso de fogos de artifício fora de hora, sem nenhuma festa.

A tempestade continuou madrugada adentro, enquanto eu tirava o carregador do celular, a tomada da TV e de outros de outros aparelhos domésticos. Só não pude desligar o gato que se transformo­u numa pilha, comemorand­o o temporal. Grafite adorou a tempestade, ia correndo para a janela para ver os raios, deslumbrad­o com uma luz tão natural quanto assustador­a, um holofote para plateias perplexas que se movimentav­am dentro dos apartament­os. O gato espiava tudo pela vidraça, enfiando o focinho nas frestas da cortina, como se assistisse às Olimpíadas. Tentei em vão deixá-lo fora do “estádio”.

Quando a tempestade acalmou, as pombas voltaram às arvores acomodando­se entre os galhos e a chuva. Aves são impermeáve­is, usam capas invisíveis que a gente nem nota e só têm medo de barulho, sejam rojões ou trovões.

Em casa, enquanto Grafite assistia ao temporal, a gata Tattoo acomodou-se dentro de um armário e só deu sinal de vida quando amanheceu e um ar mais limpo entrou pela janela, como a primeira lufada do dia. Há gatos que procuram abrigo, como Tattoo, e gatos ‘kamikaze’ como o Grafite, que adorou estar no meio do barulho, no sexto andar de um prédio, com o olhar atento de um piloto de guerra.

Assisti a tudo e respeitei a tempestade. Estivesse no mar, o medo seria dobrado. Já estive em temporais dentro de barcos e o que vi é tão assustador quanto um texto de Shakespear­e. Da janela de um prédio não chego a relaxar observando raios, nem ouvindo trovões, mas pelo menos meu edifício não balança. Só recebe a chuva, enquanto a natureza dá seu recado.

Ao contrário dos gatos e das pombas, não dou moleza a tempestade­s. Só ligo de novo os aparelhos elétricos quando o dia amanhece com a cara de quem tomou banho no grande chuveiro que marca a entrada e a saída das estações. E que venha mais uma primavera.

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Ilustração: Marco Jacobsen

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