Fábricas do medo
Slasher e giallo, subgêneros do cinema de terror, são temas da mostra que começa hoje no Cine Humberto Mauro, com 40 filmes em cartaz
Michael Myers, Jason Voorhees e Freddy Krueger, vilões das franquias “Halloween”, “Sexta-feira 13” e “A hora do pesadelo”, respectivamente, têm em comum não apenas a predisposição para o assassinato. Os três pertencem a um dos subgêneros mais aclamados do terror: o slasher.
Caracterizado por malvados mascarados ou desfigurados, vítimas adolescentes e imagens de violência explícita, o slasher viveu sua era de ouro nos anos 1980. É descendente de outra vertente do terror, o giallo italiano, que influenciou diretamente os filmes “Chamas da morte” e “Brinquedo assassino”, por exemplo.
Nesta sexta-feira (6/7), estreia a mostra “Estruturas do medo: giallo e slasher”, no Cine Humberto Mauro, com entrada franca. Serão exibidos 40 longas dos dois subgêneros até 6 de agosto. A tradicional “Sessão da meia-noite” (de hoje para amanhã) trará um clássico: “Psicose”, de Alfred Hitchcock, lançado em 1960. A retirada de ingressos para este filme deve ser feita exclusivamente na plataforma Eventim.
“É difícil pensar o terror sem pensar nos filmes slashers”, afirma Vitor Miranda, gerente de cinema da Fundação Clóvis Salgado. “Decidimos complementar a programação com o subgênero que originou sua estrutura, além de trazer longas famosos que muitas pessoas têm interesse de rever ou assistir pela primeira vez no cinema”, explica
HITCHCOCK E LITERATURA
O giallo mistura um pouco de Hitchcock com literatura policial, observa. “‘Seis mulheres para o assassino’, de Mario Bava, considerado o primeiro giallo, é muito parecido com ‘Psicose’. Quando o subgênero italiano se estabeleceu, passou a influenciar os cineastas norte-americanos que criaram o slasher”, informa Miranda.
A mostra terá sessões comentadas dos filmes “Os pássaros das plumas de cristal”, “Horário de visitas”, “Monstros”, “Acampamento secreto” e “O animal cordial” por pesquisadores e críticos. O professor de cinema José Ricardo Miranda Jr. vai ministrar o curso gratuito “Atravessamentos brutais: materialidade e transcendência no Giallo e Slasher”, nos dias 17 e 18 deste mês.
“O giallo tem endereço muito específico: a Itália. Ele vem da literatura do crime comercializada nas chamadas revistas pulp, livrinhos que tinham capas amarelas para indicar o gênero da narrativa. Por isso o nome giallo – amarelo, em italiano”, afirma Miranda.
Filmes do subgênero italiano abordaram o crime de ordem psicológica, com traços do cinema de suspense e policial.
“Conforme o giallo progride, mais elementos de terror são incorporados à narrativa, com destaque para imagens violentas e sistemas psicossexuais. Figuras como Mario Bava e Dario Argento ajudaram a definir o gênero durante as décadas de 1960 e 1970”, detalha.
Miranda destaca que apesar de o slasher ter sido muito influenciado pelo giallo, ele traz características que o diferenciam da narrativa italiana.
JASON
“Apesar de o slasher também ser marcado por imagens violentas, já não dá mais para defendê-lo como uma dinâmica tão psicossexual quanto no subgênero antecessor. É muito comum no slasher a história do assassino mascarado, o que traz outra dimensão para as narrativas. Se no giallo o assassino é uma figura misteriosa que pratica crueldades de ordem sexual, os monstros do slasher geralmente têm dificuldades nesse aspecto e são amplamente conhecidos. O assassino slasher é o próprio filme. As pessoas não vão assistir a ‘Sexta-feira 13’, elas vão ver o filme do Jason”, brinca o professor.
O Cine Humberto Mauro também exibirá produções recentes que jogam com códigos característicos dos filmes de terror, além de satirizá-los. É o caso de “Pânico”, “Todo mundo em pânico” e “Terror nos bastidores”.
“Os filmes slasher criaram uma fórmula que deu muito certo e foi usada até a saturação. Várias franquias tinham custo de produção baixo, o que deu margem à criação de inúmeras sequências que não se preocupavam tanto com a qualidade. Filmes como ‘Pânico’ e “A hora do pesadelo 4”, ambos de Wes Craven, são slashers muito autoconscientes de seus próprios clichês e repetições”, afirma Vitor Miranda.
Nas próximas semanas, os longas “Treze mulheres”, “Os crimes do museu”, “Curva do destino”, “A tortura do medo” e “Seis mulheres para o assassino” ficarão disponíveis na plataforma de streaming Cine Humberto Mauro MAIS. ■
* Estagiária sob supervisão da editora-assistente Ângela Faria
Em 1982, foi publicado, na revista October, o ótimo texto “The future of allusion” (O futuro da alusão), em que Noel Carroll discorre a respeito de uma série de citações, diretas ou indiretas, que se tornaram mais frequentes nos filmes a partir da popularização das escolas de cinema e do maior conhecimento da história da sétima arte.
Não se imaginava, naquela época, que um filme como “Entrevista com o demônio”, de Cameron e Colin Cairnes, praticamente um compilado de alusões a outros filmes, pudesse ser feito.
Na trama, Jack Delroy, apresentador de talk show da TV americana, interpretado com brilho por David Dastmalchian, está em franca decadência após a morte de sua mulher atriz. Ele resolve apelar e entrevistar uma escritora que controla uma menina possuída por um demônio.
Mas chama também um mágico que se especializou em desvendar charlatanismos dessa espécie, o que deixa o demônio dentro da menina ainda mais incomodado e disposto a fazer estragos.
Desde o início, são vários os filmes citados, a maioria dos anos 1970, época em que a trama é ambientada: “O massacre da serra elétrica”, “Irmãs diabólicas”, “O exorcista”, “O fantasma do paraíso”, “Carrie: A estranha”, “Rede de intrigas”, e por aí vai.
ALUSÃO A BRIAN DE PALMA
Não é curiosa a ausência de alusões a “Ghostwatch”, de 1992, já que este telefilme de Lesley Manning, produzido e exibido pela BBC, tem em sua estrutura um molde para “Entrevista com o demônio”, com a marcante diferença de que este último se passa quase todo no estúdio de televisão, enquanto o outro traz reportagens na casa onde ocorreram as atividades paranormais.
Um filme que faz alusões a dezenas de outros não é necessariamente ruim ou bom. A alusão, por melhor que seja o filme de referência, não garante qualidade. Mas é um artifício tão frequente, dada a configuração do cinema nos últimos anos, que pode surgir sem que o diretor perceba.
Os irmãos diretores de “Entrevista com o demônio”, cujo filme anterior, “Scare campaign”, de 2016, é também um terror envolvendo um programa de TV, sabem muito bem onde estão pisando. Partem da ideia do “found footage”, mas buscam em diretores dos anos 1970, principalmente em Brian De Palma, a solidez estética de que precisam para amedrontar o público.
ARTIMANHAS
Há um risco em recriar programa vagabundo de TV no cinema. Se o filme inteiro for esse programa, é difícil resultar em algo marcante. No cinema, raramente menos com menos dá mais. O filme inteiro depende unicamente de um conceito, logo, há uma clara limitação de princípio.
Quando Brian De Palma simula um programa ruim de TV no começo de “Irmãs diabólicas”, ele conta com o contraste entre as imagens vistas nesse programa fake e as imagens de cinema que o filme passa a mostrar em seguida.
Em “Entrevista com o demônio”, o que não é o programa vagabundo é um aglomerado de imagens de bastidores mal captadas, como se uma equipe amadora estivesse ali registrando o tempo todo os preparativos do programa no estúdio.
Essa limitação é resolvida parcialmente por Cameron e Colin pela dinâmica da proposta e pelas artimanhas dos produtores e do apresentador para manter o programa no ar. Como em “Rede de intrigas”, vale tudo pela conquista de maior audiência.
COMEÇO PERIGOSO
Há ainda uma questão importante a ser discutida: o uso da polêmica inteligência artificial (IA) em três imagens estáticas. De fato, esse uso pode ser algo nocivo em todos os campos profissionais, ainda mais em uma arte tão prejudicada por inúmeros fatores, incluindo o econômico.
Por outro lado, quem o vê sem saber desse detalhe da produção percebe que o filme tem seu valor. Por que esse valor desapareceria quando passamos a saber do uso da IA?
“ENTREVISTA COM O DEMÔNIO”
Direção de Cameron e Colin Cairnes. Com David Dastmalchian, Laura Gordon e Ian Bliss. Em cartaz nas redes Cineart, Cinemark e no Una Cine Belas Artes
(Rua Gonçalves Dias 1.581 – Lourdes).
Entende-se que é um começo perigoso, que pode desmantelar toda uma cadeia produtiva e transformar o cinema em outra coisa. A questão mais importante, por enquanto, é o filme em si, o resultado do que vemos na tela.
Este, sim, pode ser criticado por algumas opções – o exagero dos minutos finais, por exemplo, ou a limitação anteriormente mencionada. Só não dá para rejeitá-lo por completo, ainda, de um ponto de vista da crítica. (Sérgio Alpendre/Folhapress) ■
Morreu ontem o cineasta Clery Cunha, conhecido por trabalhos como “Os desclassificados”, com Hélio Souto e Joana Fomm num suspense inspirado em um crime real, e “Joelma 23º andar”, filme com Beth Goulart, que reconta o incêndio do edifício Joelma, em São Paulo, que o sagrou como pai do cinema espírita.
Cunha, que tratava um câncer, tinha 85 anos e morreu em casa, em São Paulo. Nascido em Leopoldo de Bulhões, em Goiás, ele começou sua carreira em 1956, como operador de cabo da TV Tupi. Após trabalhos na área técnica, foi ator em programas como “TV de vanguarda”, seguido de trabalhos no teatro, atuando em “Sorocaba senhor” e “O amor venceu”, dirigindo “Pluft, o fantasminha” e “Entre quatro paredes”, além de ter sido produtor de rádio.
Mas foi o cinema que deu a maior projeção ao artista. Um de seus maiores sucessos, “Joelma 23º andar” (1980) misturou cenas ficcionais com imagens reais da tragédia no edifício que sofreu um incêndio em 1974.
O filme reconstitui a morte da digitadora Volquimar Carvalho dos Santos, que morreu asfixiada junto de outras colegas. Posteriormente, o médium Chico Xavier psicografou a carta em que o espírito de Volquimar, supostamente, relata os últimos momentos da moça. O texto integra o livro “Somos seis”.
Fã de quadrinhos, seriados policiais e faroestes, Cunha produziu filmes de apelo popular produzidos na Boca do Lixo, em São Paulo. Também dirigiu “A pequena órfã” (1973), melodrama baseado na telenovela da TV Excelsior, com participação do sambista Noite Ilustrada.
Já “Pensionato de mulheres”, de 1974, reuniu nomes como Magrit Siebert e Helena Ramos no elenco, com roteiro de Joana Fomm e diálogos de Ody Fraga.
Na onda do sucesso de “O menino da porteira”, ele produziu ainda a comédia “Chumbo quente” com a dupla sertaneja Léo Canhoto e Robertinho, com toques de faroeste spaghetti e de teatro circense.
A aproximação com o universo popular televisivo se refletiu ainda em “O outro lado do crime” (1979), com participação e narração do repórter policial Gil Gomes, e “O rei da boca”, de 1982, que reconta a ascensão e queda de um chefão do submundo paulistano. (Henrique Artuni – Folhapress) ■