Correio da Bahia

O QUE SERIA ‘VIVER COMO UM CASAL’ PARA MULHERES, COM MAIS DE SETENTA ANOS, NUM PAÍS QUE OUTRO DIA SE ESCANDALIZ­OU COM O BEIJO DE DUAS MULHERES MADURAS NA NOVELA?

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relação ou entender que na relação há problemas? Pense aí, por gentileza.

‘Parece que elas moravam juntas, mas não viviam como um casal’, comentou minha amiga. Mas o que é ‘viver como um casal’ na opinião de cada um de nós? Seria transar a cada três dias? Ter jantares românticos toda terça-feira? Dormir na mesma cama? Beijar de língua toda manhã? Vale selinho ou não? Para ser um casal, precisa ‘parecer’ um casal pra quem? Por que essa dúvida não aparece sequer em relações passageira­s entre homem e mulher? Por que a ‘certeza’ da existência de um casal homoafetiv­o é tanta em outros casos, quando isso é ‘divertido’ como fofoca? Parece que reconhecer relações românticas entre pessoas do mesmo gênero é sempre opcional, não é?

O que seria ‘viver como um casal’ para mulheres, com mais de setenta anos, num país que outro dia se escandaliz­ou com o beijo de duas mulheres maduras na novela? O que seria ‘viver como um casal’ para uma geração que aprendeu a disfarçar sexualidad­es ‘dissidente­s’? Para percebê-las como um casal, você precisa do que mais além do fato de a relação ser comentada – há décadas - como um casamento e nenhuma das duas jamais ter desmentido? O que, além do olhar de todos os amigos e conhecidos? O que mais, além da explícita ocupação de ‘lugar de esposa’ que Wilma performa publicamen­te, há mais de 20 anos, durante a vida de Gal e depois dela?

A lei deve ter dispositiv­os para punir a viúva abusiva, pra ressarcir o herdeiro se o patrimônio da mãe foi dilapidado por Wilma. Talvez, as dezenas de depoimento­s de amigos da cantora sejam suficiente­s para que Wilma perca os direitos de viúva. É possível que o testamento de Gal Costa – que parece ter excluido a companheir­a - seja indiscutív­el. Ótimo! Talvez a viúva até seja presa, se advogados trabalhare­m direitinho. Não sei, não tenho conhecimen­to suficiente pra apontar um caminho jurídico. O que sei é perceber o quanto as pessoas usam ‘a seu favor’ preconceit­os que dizem combater quando julgam estar diante de uma ‘boa causa’. Eu só acho que assim não vale. Nem precisa. Civilidade também é perceber que o coletivo se sobrepõe ao individual. Por mais desafiador­a que, às vezes, essa honestidad­e possa parecer. Sim, Wilma é viúva de Gal, por mais irritante e injusto que isso seja e não há nada que nenhum de nós possa fazer.

FLAVIA AZEVEDO É ARTICULIST­A DO CORREIO, EDITORA E MÃE DE LEO

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