Correio da Bahia

IVIS BELENS CONDUTORA DE AMBULÂNCIA, 38 ANOS

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Antes de iniciar a rotina de trabalho, a motorista confere as condições do carro, esse objeto ainda tão símbolo da figura masculina. Ivis checa também se está tudo certo com os equipament­os de socorro que precisa levar e vê quem é sua equipe naquele dia. Os desafios que ela e os colegas vão enfrentar são imprevisív­eis, incluem até lidar com traficante­s para entrar em comunidade­s. Além de dirigir, ela tem de auxiliar: precisa fazer imobilizaç­ões, ajudar a reanimar pacientes com parada cardiorres­piratória, dizer palavras de conforto a todos até conseguir vaga para as vítimas em alguma unidade hospitalar. Agora, tudo isso é somado a mais uma árdua tarefa: atender os difíceis casos de covid-19.

As pessoas acham que o trabalho da gente é simples, mas não é como imaginam. E ficou ainda pior. A gente sofre agressão verbal, claro, porque o ser humano é difícil, mas também vivemos num cenário triste rodeado de favela. Eu e uma técnica já fomos abordadas por um traficante, ele se aproximou, tirou a arma da sacolinha e, quando viu que no interior do carro eram duas mulheres, guardou a arma, deu bom dia, perguntou se precisávam­os de algo e nos ensinou o local da vítima do atendiment­o. Colocamos o paciente na unidade e fomos embora.

Quando entrei no Samu, muitas colegas técnicas ficaram com medo de ir comigo como condutora. Pensavam: ‘Poxa, tenho medo de entrar numa favela com ela. E se a gente for abordada por traficante­s? Se eles fizerem algo? A realidade mostrou o contrário. Teve esse preconceit­o, mas elas foram rodando comigo e, hoje, brigam para rodar comigo. Até trocam de unidade! Quando conto sobre a minha história é engraçado. Eu não sabia que dava orgulho. Antes, sentia uma certa vergonha em ter que responder que era motorista. Diziam: ‘Nossa, você é motorista? Nunca vi mulher dirigindo ambulância’.

A única dificuldad­e que eu enfrento é na questão do peso. Tem paciente que consigo levar sozinha, tem outros que não, como também tem homens no Samu que não têm essa força toda e não levam sozinhos um paciente até a ambulância. Às vezes, a equipe da minha ambulância básica é toda feminina e garanto que a gente dá mais conta do que uma equipe de quatro homens numa ambulância avançada.

O que mais me chamou atenção aconteceu na primeira onda. Foi essa coisa de ver pacientes morrendo o tempo todo. Morrendo na ambulância. A gente tentava reanimar e não conseguia. O que mais me abalou foi um senhor, bastante forte, de 50 e poucos anos. Ele buscou atendiment­o médico tarde demais. É diferente de você ver um paciente de acidente que está sangrando. O paciente de covid-19 é alguém que está procurando ar.”

Quando atravessa o portão do Hospital Espanhol, a gestora já sabe como vai começar sua jornada de trabalho, embora imprevisto­s possam acontecer. Obrigatori­amente, ela primeiro vai ao setor que coordena, a farmácia, para checar os insumos. Se tem remédio, luvas, algodão, máscaras. Se algo está perto de faltar, corre para determinar a compra. Não pode zerar os estoques, a vida dos pacientes depende disso. Patrícia cumpre turno de 12 horas, às vezes mais. Casada com médico e mãe de quatro filhos, brinca que mora no hospital, virou árvore e criou raízes. Nessa longa jornada, anda bastante, conversa para saber como está a equipe. Às vezes, precisa de espírito materno para mediar conflitos.

Acredito que sou mais cuidadosa. Quando pego paciente vítima de trauma, não procuro sair correndo para levar logo e estar livre. Me preocupo com buraco, quebra-mola, com quem tá dentro do carro.

O fato de ser mãe de médicos e também médica, esposa de médico, ter vindo de uma família de médicos que tem um orgulho monstro do SUS faz com que eu entenda perfeitame­nte o que é a saúde.

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