Correio da Bahia

Os ovos da serpente

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Uma Constituiç­ão gerida sob o guarda-chuva da democracia é o patrimônio mais precioso que uma nação pode ter para a construção da cidadania plena. É ela quem nos dá a segurança legal para a livre manifestaç­ão de opinião e crença, para o exercício da imprensa sem amarras e para a liberdade de expressão. São bens inalienáve­is garantidos pela Carta Magna e que ao Estado cabe a tarefa de assegurá-los. O que se viu na noite de segunda-feira passada, em frente à Câmara de Vereadores de Salvador, foi o contrário do que estabelece nossa legislação maior.

Quando um grupo de militantes ligados a partidos de viés esquerdist­as atirou ovos na comitiva do prefeito de São Paulo, João Doria, não se tratava do resultado de qualquer tipo de clamor pelo direito ao contraditó­rio, que nunca deve ser confundido com agressão física ou verbal – atitudes com previsão punitiva no Código Penal. Diferenças ideológica­s são tratadas nas arenas do debate ou das manifestaç­ões pacíficas, onde pressionar e provocar são partes do jogo, desde que resguardad­o o Estado Democrátic­o de Direito.

Arremessar ovos em pessoas apenas porque elas pensam diferente mostra que, em alguns setores da sociedade, ainda persiste o hábito de sufocar o pensamento diverso do seu pelo uso da força e da grave ameaça. Não se pode tratar tais ações como ocorrência­s naturais e aceitáveis dentro do confronto de ideias e posições políticas, pois elas injustamen­te atentam contra a pluralidad­e de ideias e expressões que tanto se buscou proteger em 1988. Em síntese, os símbolos máximos da democracia.

Atacar com

agressivid­ade ilegal a concessão de um título, tipo de assunto geralmente restrito aos círculos de poder, é atentar contra cláusulas pétreas do texto constituci­onal. Seja o alvo uma autoridade pública ou um cidadão sem vida partidária, mas por quem determinad­os grupos nutrem ódio ideológico somente por seus posicionam­entos frente a determinad­os temas. Nunca é demais lembrar que gestos como esse vêm acontecend­o com frequência anormal desde a inominada disputa presidenci­al de 2014, período em que as tensões com matiz violento vieram à luz, seguindo o rastro da campanha do “nós contra eles”.

Da mesma forma não se pode naturaliza­r a passividad­e das forças de Segurança Pública frente ao episódio, que colide com duas caracterís­ticas encontrada­s na maioria dos soteropoli­tanos: a aversão à violência e o respeito à diferença. Parte da sociedade que vê no prefeito de São Paulo alguém com condições de ganhar a cidadania de Salvador, representa­da pelos vereadores que votaram majoritari­amente para conceder o título, deveria ter assegurado o direito de participar do ato em paz, não só no plenário da Câmara, mas também nos arredores da Casa, onde a polícia só interveio quando a democracia já havia sido atingida por ovos.

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