Folha de S.Paulo

Vírus, fome e chuva desafiam família de encosta em Salvador

Sem renda, moradores vivem dilema ao se isolarem em áreas de risco

- João Pedro Pitombo

salvador Em uma casa de apenas um cômodo no sopé de uma encosta no bairro do Lobato, subúrbio ferroviári­o de Salvador, Andressa Cerqueira, 18, e Felipe Santana, 23 viveram uma noite de tensão no início de abril.

A chuva forte castigou o telhado, goteiras se formaram e alagaram o chão de cimento da casa. Mal pregaram o olho. Mas, desta vez, a terra não deslizou tal qual aconteceu há dois anos, atingindo uma casa vizinha.

Em 12 h, choveu em média 120 milímetros na capital baiana, o equivalent­e a metade do volume esperado para todo o mês de abril. Desde então, novas frentes frias chegaram à cidade e causaram estragos: na segunda-feira (20), foram registrado­s 70 deslizamen­tos de terra na capital baiana.

A chegada do período chuvoso criou uma espécie de tempestade perfeita para famílias que moram em áreas de risco. Além medo de deslizamen­tos, recorrente­s nesta época do ano, as famílias ainda enfrentam a falta de renda e os cuidados com a pandemia do novo coronavíru­s.

As chuvas também trouxeram novo dilema para as famílias: ficar em casa, seguindo a recomendaç­ão de isolamento para achatar a curva da pandemia ou de sair de casa, diante do risco iminente de deslizamen­tos de terra.

“Fico aqui porque não tenho outro lugar para ir. Mas, em uma situação dessa, quem não fica com medo de morrer? A chuva me dá medo, o coronavíru­s também”, afirma a dona de casa Andressa Cerqueira.

O diretor-geral da Defesa Civil de Salvador, Sosthenes Macêdo, diz que as equipes do órgão estão fazendo vistorias nos imóveis em áreas de risco e orientando a população a buscar abrigo em locais mais seguros no período de chuvas.

“O ideal é que as pessoas que vivem em áreas mais vulnerávei­s busquem soluções de moradias temporária­s neste período. Com o coronavíru­s, queremos afastar ao máximo a possibilid­ade de ter que colocar essas pessoas em abrigos e gerar aglomeraçõ­es”, afirma.

Mas nem todo mundo tem essa possibilid­ade. Andressa diz que não faz sentido ir para casa de um parente porque eles também vivem em áreas de risco. Seu pai, sua irmã, tia e avó moram em casas vizinhas, todas residência­s de um ou dois cômodos e sem reboco, próximas à linha do trem.

As casas ficam em uma das áreas de maior risco de deslizamen­to em Salvador. A região é considerad­a tão crítica que foi escolhida para receber um dos 11 sistemas de sirenes que a prefeitura instalou há quatro anos em áreas de risco.

O pai de Andressa, Anderson Cerqueira, 41, mora três casas adiante da dela. Ele sobrevive da venda de balas dentro dos ônibus de Salvador, mas se viu sem renda em meio à pandemia: com a redução do número de pessoas nas ruas, não há para quem vender.

Para ele, mesmo se as pessoas estivessem nas ruas e os ônibus, cheios, a situação não seria diferente. Pelo menos enquanto os casos da doença não cessarem. “Você acha que alguém vai querer chegar perto e tocar na minha mão para pegar uma bala ou entregar o dinheiro? Não vai.”

Sem outra fonte de renda, Anderson conta com a ajuda dos parentes para alimentar a si mesmo, sua mulher e o filho pequeno. Na manhã desta terça-feira (7), levou o filho para a casa da irmã para tomar uma xícara de café. No dia anterior, o almoço da família foi apenas cuscuz. Sem leite, sem ovo, nem manteiga.

“Estou vivendo pela misericórd­ia de Deus. Semana passada, cheguei a ficar dois dias sem nenhuma comida em casa”, afirmou. O botijão de gás da casa de Anderson também havia acabado —desde então, ele cozinhava na casa da irmã, Débora Cerqueira, 30.

Moradora da casa ao lado, Débora, que sobrevive vendendo balas em ônibus, agora se vê em casa com o marido, dois filhos, uma sobrinha e a sua mãe, que tem 60 anos e é considerad­a grupo de risco em caso para a Covid-19.

Ela estava preocupada porque a mãe saiu para ir ao posto de saúde para tratar da diabetes. Também preocupa o fato de seu marido sair todos os dias em busca de bicos para garantir a comida da família, ficando exposto à doença. Enquanto isso, a família fica em casa: “A gente não está saindo. Fico aqui, mas tenho medo”.

Na casa da sobrinha de Débora, Andressa, é o marido Felipe que sai todos os dias em busca de trabalhos como carregador na feira de São Joaquim, a maior da capital baiana. Ele diz que o movimento por lá caiu muito. No dia em que conversou com a reportagem, fez três carregamen­tos e voltou para casa com R$ 30.

Na geladeira do casal há apenas garrafas com água e uma panela com um resto de feijão do dia anterior. Da feira, Felipe voltou com uma penca de bananas, que pediu a um feirante com quem trabalha.

Na casa ao lado, a irmã de Andressa, Adriana Cerqueira, 17, viu o marido voltar da feira com um pedaço de fígado, que ela cozinharia com sal e cominho para alimentar os dois e a filhinha Ayana, 2. Não havia arroz para cozinhar.

Sem fontes de renda alternativ­as, em meio a uma pandemia e com chuvas que colocam a vida de toda a família em risco, Andressa, Anderson, Débora e Adriana apostam no poder público. Eles cadastrava­m-se para receber os R$ 600 prometidos pelo governo federal para trabalhado­res informais por três meses. Aguardam o benefício com ansiedade: “Não pode demorar. Logo, a nossa barriga vai colar nas costas”, diz Andressa.

Focados em garantir renda para ter o pão na mesa, não se preocupam com as frentes frias que devem chegar à cidade —o período chuvoso vai até junho. Diz Felipe: “Se chover forte e essa sirene tocar, nem sei o que vai ser. Vou deixar minha casa? Aqui estão as coisas que a gente guerreou para conseguir. Não dá para ir embora”.

Avó e neta de quatro meses morrem após deslizamen­to

Uma mulher de 41 anos e sua neta de quatro meses morreram nesta quinta (23) após deslizamen­to de terra no bairro de Águas Claras, em Salvador.

Cinco pessoas da mesma família estavam em casa quando a terra deslizou sobre o imóvel por volta das 9h30 desta quinta, após fortes chuvas.

A criança, Maria Eduarda, chegou a ser resgatada por vizinhos e levada a uma Unidade de Pronto Atendiment­o no bairro de Valéria. Mas não resistiu aos ferimentos.

A avó da criança, a diarista Maria da Conceição Fraga Teixeira, foi encontrada pelo Corpo de Bombeiros já sem vida, após três horas soterrada.

Outras três pessoas da família —dois homens e uma mulher— foram resgatados com ferimentos leves. Um dos homens foi levado para a Unidade de Pronto Atendiment­o com um corte no pé e tem o quadro de saúde estável.

Equipes da Defesa Civil de Salvador vistoriam imóveis no local do deslizamen­to e orientam as famílias a buscarem abrigo em áreas mais seguras.

Diante da pandemia, a prefeitura tem incentivad­o a busca por soluções de moradias temporária­s. O objetivo é evitar que famílias tenham que ficar em abrigos públicos emergencia­is, que geraria aglomeraçõ­es.

Estas são as primeiras vítimas da temporada de chuvas em Salvador, que historicam­ente começa no mês de abril e se estende até junho.

A chegada das chuvas trouxe dilema para as famílias: ficar em casa, em isolamento, ou buscar abrigo em outro local diante do risco iminente de deslizamen­tos de terra.

“Fico aqui [em encosta no bairro do Lobato, subúrbio ferroviári­o de Salvador] porque não tenho outro lugar para ir. Mas, em uma situação dessa, quem não fica com medo de morrer? A chuva me dá medo, o coronavíru­s também

Andressa Cerqueira dona de casa

 ?? Raphael Muller/Folhapress ?? Moradores do bairro Lobato, em Salvador, que sofrem com falta de renda e o medo do vírus e de deslizamen­tos
Raphael Muller/Folhapress Moradores do bairro Lobato, em Salvador, que sofrem com falta de renda e o medo do vírus e de deslizamen­tos

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