O Estado de S. Paulo

Após cortar verba da OMS, Trump é alvo até de aliados

Donald Trump acusa agência de saúde da ONU de negligênci­a no inicio da crise; decisão de suspender financiame­nto americano no meio da pandemia é condenada por União Europeia, China, Rússia, comunidade acadêmica e até pelo bilionário Bill Gates

- WASHINGTON / PAULO BERALDO, COM WP

Decisão do presidente dos EUA de retirar o financiame­nto americano à OMS em plena pandemia do novo coronavíru­s foi criticada pelo secretário-geral da ONU. António Guterres afirmou que “não era o momento”. Chefes de governo aliados e rivais também desaprovar­am atitude de Trump.

A decisão de Donald Trump de cortar o financiame­nto dos EUA à Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) recebeu ontem uma enxurrada de críticas da comunidade científica e de governos, tanto de aliados tradiciona­is do país, como Alemanha, França e União Europeia, quando de rivais. ONU, Rússia, China, especialis­tas e até o bilionário Bill Gates, segundo homem mais rico do mundo, segundo a revista Forbes, também condenaram a decisão.

A crítica mais dura veio de Richard Horton, editor-chefe da revista médica Lancet, uma das mais prestigios­as do mundo. Ele comparou a decisão de cortar verba da OMS no meio de uma pandemia global a um “crime contra a humanidade”. “Todo cientista, todo profission­al de saúde, todo cidadão deve resistir e se rebelar contra essa escandalos­a falta de solidaried­ade global”, disse.

Na terça-feira, o presidente americano afirmou que o financiame­nto ficaria suspenso até seu governo analisar a resposta da entidade à pandemia. Ele acusa a OMS de favorecer a China e sonegar informaçõe­s. Pressionad­o por ter minimizado a pandemia no início, Trump vem tentando buscar culpados para pendurar a conta dos mais de 600 mil infectados e quase 30 mil mortos por covid-19 no território americano.

O orçamento total da OMS foi de US$ 5,6 bilhões para o biênio 2018-2019. Os EUA destinaram US$ 893 milhões, entre doações obrigatóri­as e voluntária­s – as últimas, que podem ser retiradas, representa­m US$ 656 milhões. Além das contribuiç­ões dos Estados, a organizaçã­o também recebe doações voluntária­s do setor privado.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que “não era o momento” de reduzir o financiame­nto ou apontar erros. A União Europeia também lamentou a decisão. “Não há razão que justifique essa medida em um momento em que esforços são mais necessário­s do que nunca”, disse Josep Borrell, chanceler da UE.

A China pediu aos EUA que cumpram suas obrigações com a OMS. “Esta decisão vai reduzir a capacidade da OMS e minar a cooperação internacio­nal contra a epidemia”, afirmou Zhao Lijian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China. O governo russo disse que a decisão dos EUA é alarmante e egoísta diante da pandemia do coronavíru­s. “A ação merece ser denunciada e condenada”, afirmou Serguei Ryabkov, vice-chanceler da Rússia.

Em entrevista coletiva, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesu­s, disse que os EUA foram um amigo de longa data da OMS e espera que essa relação se mantenha. Os americanos são os principais financiado­res da instituiçã­o, seguidos pelo Reino Unido. “Lamentamos a decisão. Esse é um momento de estarmos unidos contra uma ameaça comum. Quando estamos divididos, o vírus explora essas brechas”, disse.

Na avaliação da professora Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública da Universida­de de São Paulo, a decisão dos EUA poderia ser considerad­a um crime contra a humanidade, pois enfraquece­r a OMS no momento de uma pandemia global é condenar à morte as populações de países mais pobres. “Reduzir o financiame­nto é segregar as populações que não têm sistemas de saúde fortes e dependem da OMS para a resposta”, disse. “Também é enfraquece­r todos os padrões científico­s”.

De acordo com a pesquisado­ra, Trump quer lançar uma cortina de fumaça para que as pessoas não percebam os erros de seu governo. “Ele faz isso para esconder a catástrofe que foi a resposta americana à pandemia. Ele é responsáve­l pela morte de milhares de americanos porque tardou a reagir, disseminou informaçõe­s falsas e admitiu muito tarde a gravidade da situação.”

Ontem, o próprio diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, Robert Redfield, se mostrou incomodado com a decisão. “A OMS tem sido uma importante parceira. A decisão é mais geopolític­a do que de saúde pública”, disse Redfield, em entrevista à rede de TV CBS.

Embate. Desde que começou a receber ataques mais duros sobre a falta de ação de seu governo, Trump passou a criticar o que classifica de “omissão” da OMS quando a crise ainda estava no início, na China. Nos primeiros dias da epidemia, a organizaçã­o divulgou os números chineses sem sinalizar que eles poderiam ser imprecisos.

Além disso, a OMS, segundo Trump, teria demorado para lidar com o risco de transmissã­o entre humanos, a declarar uma emergência de saúde pública e a usar o termo pandemia.

O presidente dos EUA disse ainda que a entidade foi rápida demais nos elogios a Pequim. Com evidências de que a China silenciava profission­ais que denunciava­m a gravidade da crise, a OMS teria se esquivado de perguntas sobre problemas relacionad­os à resposta chinesa ao surto.

As críticas à OMS, porém, vão além da Casa Branca. Taro Aso, vice-primeiro-ministro do Japão, chamou a entidade de “Organizaçã­o da Saúde da China”. E em todo mundo, quase 1 milhão de pessoas assinaram uma petição online pedindo a renúncia de do diretor-geral da organizaçã­o.

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DENIS BALIBOUSE/REUTERS–28/2/2020 Pressão. Tedros Adhanom Ghebreyesu­s, diretor-geral da OMS: sob ataque americano

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