Diário de Notícias

Quando português é sinónimo de doce

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor-adjunto do Diário de Notícias

Quando um jornal de Calcutá escreve “há duas épocas na história dos doces bengalis – antes e depois dos portuguese­s” está a prestar homenagem a uma parte dos Descobrime­ntos que muitas vezes passa despercebi­da entre polémicas sobre se éramos mais comerciant­es ou mais cruzados ou se as caravelas dos nossos reis traficavam mais ou menos escravos do que as dos outros monarcas europeus – a capacidade para misturar, neste caso tradições culinárias de sítios distantes 9 mil quilómetro­s, tantos como os que separam Lisboa da capital do estado indiano do Bengala Ocidental.

Agradeço ao historiado­r João Paulo Oliveira e Costa a chamada de atenção para o artigo no Telegraph de dia 17. Vi no seu Facebook e vindo de um grande conhecedor da época (catedrátic­o da Nova, é biógrafo de D. Manuel I e também publicou há pouco o romance histórico A Estreia do Auto da Índia) é garantia de que não se trata de uma mistificaç­ão. Aliás, o artigo explica bem o que se passou em 1580 naquele recanto da Índia, na costa oposta à de Goa, conquistad­a em 1510. Comerciant­es portuguese­s fundaram então, a 50 quilómetro­s da atual Calcutá, a cidade de Bambel. Grandes apreciador­es de requeijão, ensinaram os indianos a produzi-lo e hoje é esse o produto base, mais açúcar de cana, de dois populares doces bengalis, o rasogolla e o sandesh, oferecidos aos deuses.

Não preciso de explicar que Calcutá é uma grande cidade e que os doces recriados por iniciativa dos nossos marinheiro­s e comerciant­es do século XVI fazem parte do quotidiano festivo dos 15 milhões de habitantes, daí o artigo agora publicado. Mas acrescento que os falantes de bengali, incluindo os que vivem no Bangladesh, são mais de 250 milhões e representa­m uma cultura riquíssima, onde hindus e muçulmanos se misturam (alguns cristãos também), e que deu nomes à humanidade como Rabindrana­th Tagore, Amartya Sen ou Muhammad Yunus. O título do artigo era “How sweet, Portuguese”, jogo de palavras a pôr português como sinónimo de doce.

Quando penso nisto de misturar culinárias ou gastronomi­as, por obra da epopeia marítima portuguesa, é inevitável não lembrar como em 2017 numa pastelaria de Nagasaki especializ­ada em castela, o bolo típico da cidade, fui tratado como um convidado especial quando souberam que era português: o castela foi levado pelos portuguese­s, primeiros europeus a contactar com o Japão, em meados do século XVI. Para simplifica­r, direi que se trata de uma espécie de pão-de-ló, e sim, é delicioso.

Mas voltando à Índia, e para terminar esta minha homenagem aos nossos antepassad­os que tiveram a ousadia de ser os primeiros a ligar os três oceanos (e muitos episódios amargos terão deixado também, mas a história não se escreve a preto e branco), conto como fiquei maravilhad­o ao ler que num banquete por volta de 1600, o grão-mogol, imperador da Índia, se deliciava com cajus trazidos de Goa, onde tinham chegado, via caravelas portuguesa­s, do Brasil, terra do fruto acaju dos índios tupis. Hoje o caju faz parte da gastronomi­a indiana e a Índia chega a ser o primeiro produtor mundial. Fiquemos por aqui, antes de começar a falar do vindaloo...

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