Diário de Notícias

O orgulho de Goa em cantar o nosso hino e em dar-nos mais um ministro

- Leonídio Paulo Ferreira

Depois de no 10 de Junho ter visto a nossa embaixada em Nova Deli colocar no Facebook a goesa Nádia Rabelo a cantar o hino de Portugal, recebi no dia seguinte uma notícia do Herald, o jornal de Goa, a celebrar a nomeação de João Leão para ministro das Finanças. Motivo: as raízes goesas, com o Herald (que já foi O Heraldo) a sublinhar que, além do primeiro-ministro António Costa, já havia outro goês no governo português: Nelson de Souza, ministro do Planeament­o.

Não tivesse eu estado já em Goa, onde as igrejas e bairros como as Fontainhas em Panjim testemunha­m 451 anos de soberania portuguesa, e pensaria que a notícia do Herald era um pouco como o DN falar de Ernest Moniz, neto de açorianos, ter sido nomeado secretário da Energia por Barack Obama. Em Goa ainda se fala português nas gerações mais velhas e há um reacender do interesse pela língua entre os mais novos, gente como Nádia Rabelo, que é fadista. E a relação continua íntima.

Em Panjim conversei com uma senhora que me disse ter sido deputada à Assembleia Nacional, antes, pois, do 25 de Abril. “Chamo-me Maria de Lourdes Albuquerqu­e”, disse-me num português que podia ser o de uma lisboeta, ela que foi educada em Goa mas viveu também em Moçambique.

O meu amigo EdgarValle­s, antigo presidente da Casa de Goa, foi quem me enviou a notícia do Herald e também que me confirmou que a antiga deputada continua a viver no mais pequeno estado indiano, também o mais rico per capita.

O Edgar, que nasceu em Angola e é cidadão português, vive entre Lisboa e Panjim, pois passa na Índia temporadas a gerir as propriedad­es da família. E não é caso único. Depois da invasão em 1961 (libertação, dizem os indianos), o primeiro-ministro Jawaharlal Nehru garantiu o respeito pelos bens de todos os goeses, mesmo aqueles que vivessem fora ou que optassem pela nacionalid­ade portuguesa. O pai da independên­cia da Índia, e companheir­o de luta do Mahatma Gandhi, também permitiu que o Código Civil português se mantivesse. Hoje o Código de Seabra, de 1867, é considerad­o de grande modernidad­e e o canal IndianTVNe­ws ainda há uns meses fez uma reportagem que descrevia o Código Civil goês como “um exemplo brilhante da democracia indiana”. É que ao contrário de outros estados, que estiveram sob tutela britânica antes da independên­cia da Índia em 1947, a lei em Goa é igual para hindus, muçulmanos ou cristãos.

Afonso de Albuquerqu­e conquistou Goa para D. Manuel I em 1510. E promoveu o casamento entre portuguese­s e indianas, como um dia me contou o seu biógrafo, José Manuel Garcia. O próprio Albuquerqu­e, o Terrível, como lhe chamou Camões, teve uma filha meio indiana, Ximena. “Ele protegeu muito essa menina, que foi enviada no fim da vida dele para Lisboa, para depois ser casada em Portugal com grande dote e joias e toda a proteção da duquesa de Bragança”, explicou-me numa entrevista o historiado­r.

Mais do que os casamentos mistos, o sucesso de Goa no império foi a adesão de muitas famílias das elites à causa de Portugal, geralmente com a conversão ao catolicism­o também. Os goeses tornaram-se portuguese­s, mesmo sem renunciar à profunda ligação à sua terra, e espalharam-se pelo mundo. Não vou sequer dizer o contributo que deram em séculos mais antigos ao país, vou só notar que a mais célebre maternidad­e de Portugal, a Alfredo da Costa em Lisboa, homenageia um médico ginecologi­sta nascido em Salcete, concelho cuja capital é Margão.

Quando visitei Goa, fui a Margão, que alguns até podem pensar ser só nome de marca de especiaria­s. E na praça onde fica o edifício dos correios, lá está, senti que pelo menos as pedras ainda mantinham forte ligação a Portugal, até que fui ao mercado e mesmo num português frágil as vendedoras me cumpriment­aram com a alegria de verem ali um português. Também me cruzei mais a norte com uma placa que dizia Alorna e de repente percebi que os marqueses de Alorna, incluindo a célebre poetisa do século XVIII, não devem o título a um qualquer recanto das Beiras ou do Minho mas a uma terra indiana onde resiste uma velha fortaleza portuguesa.

Um dia, Antunes Ferreira entrevisto­u para o DN Indira Gandhi, a filha de Nehru. E sobre Goa a primeira-ministra indiana disse então: “Existem lá pessoas que falam português, que têm uma cultura especial herdeira em boa parte da cultura portuguesa e que nós não gostaríamo­s que se perdesse. Nós estamos mesmo a fomentar a aprendizag­em da língua portuguesa.”

Tem sido muito falada a boa relação entre António Costa e Narendra Modi, o atual primeiro-ministro indiano. O português visitou a Índia e o indiano já teve oportunida­de de retribuir. E a cooperação entre os dois países está a desenvolve­r-se, sempre com Goa e os goeses como laço mais estreito. Mas a oportunida­de perdida foi há seis décadas. Depois da partida dos britânicos e dos franceses (que em 1954 entregaram Pondicherr­y à União Indiana), Portugal poderia ter pensado numa solução negociada com Nehru, mas Salazar preferiu ignorar os ventos da história e agarrar-se a uma legitimida­de que em parte o direito internacio­nal reconheceu, mas que a relação de forças tornava impossível de defender. Tivesse havido uma negociação como a que houve, já em democracia, com a China sobre a transferên­cia de Macau e talvez em vez de ler no Herald a notícia de João Leão, com família em Sarzora e Panjim, talvez a tivesse lido em português n’O Heraldo, com os ós inicial e final do cabeçalho a serem mais do que mero jogo gráfico como agora.

O sucesso de Goa no império foi a adesão de muitas famílias das elites à causa de Portugal. Os goeses tornaram-se portuguese­s sem renunciar à profunda ligação à sua terra.

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NÁDIA RABELO A fadista goesa cantou o hino de Portugal no 10 de Junho.
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