Imbwa yakambe ngana [1]
Dias sim, semanas sempre, Dona Maria, amável mulher do sô António, vinha pôr conversa, durante toda a vida do Atenção, tentando estorvar que o canídeo tivesse vida humana.
- Mas ó minino, num faz isso. Comer com o cão ou lhe dar cuspo para te gostar não é coisa de gente, não. É coisa de bicho que se iguala ao cão. - Atirava ao ver-nos amistosamente envolvidos com o Atenção ou mais tarde com o Tigre, cão que o nosso pai dizia “é cão saído da Baia
com o mesmo nome que fica no deserto do Namibe”.
- Pode me chamar “sô meu cão-de-merda”, mamã. O Atenção é nosso amigo. Coelho que caça, põe saliva dele na ferida e a mamã come também. Então, mamã, já viu nê? – Respondeu Phande-a-umba argucioso.
- Já viu o quê?
- Cuspo de cão Atenção não é veneno. Veneno é só daqueles cães-vadios que não tomam banho, nem comem no prato como o Atenção que é nosso amigo. - Retorquiu resmungão Phande-a-umba, redobrando as carícias ao canídeo.
- Ai ê? continua mesmo respondão, sô mô bicho. Ó Sô António, estás a ouvir o teu filho, nê? Depois não me venham cá com kikonya[2] ou outras complicações. Cão que põe boca na porcaria é que você lhe lambe os beiços, assim mesmo está bom? Fala ainda pra tô pai ouvir. Assim está bom, sô mô cão. - Dona Maria levantava o tom de voz para despertar a atenção do marido que consertava as alparcatas para meter-se no mato para mais uma visita às suas armadilhas.
A conversa com pícaros desafiadores e argumentos contraditórios levava tempo. Aliás, era conversa de todos os dias da vida daquele cão. Sô António atento ao que se discutia e sendo ele também bastante afectuoso para
com o Atenção, preferiu pôr fim à contenda, chamando pelo filho.
- Phande!
-Papá.
- Vem cá. Aprende a ser homem e deixa de discutir com a tua mãe. - Ordenou Sô António ao filho.
- Papá, não fiz nada de mau. É mesmo a mamã que stá a se metê comigo e com o Atenção. – Phande procurou defender-se antevendo uma reprimenda.
- Põe corrente no Atenção. Procura salamba[3], calça quedes e vamos. Larga-lhe apenas quando transpusermos a aldeia para não se entreter com as cadelas vadias do sô Jacinto - Recomendou em voz firme.
- Está bem, papá.
Foi momento de júbilo para Phande que rápido se equipou, metendo-se a cantarolar. Cesto às costas, cat a n a n a mão di r e i t a e Atenção puxado pela esquerda, seguiu atento ao que o pai foi explicando, enquanto Atenção começava a farejar os odores deixados, madrugada recente, pelas pacas, coelhos e ngulu ya muxitu[4].
O dia era ainda criança. Sol não havia. Apenas uma bola que podia ser amarela e quente ou ofuscada pelas nuvens que viajavam na boleia do vento. Dona Maria estava dividida também. Metade de atenção à panela que cozia a batata do mata-bicho e outra metade na Júlia que chorava.
- Ainda bem que o Sô António chamou o chato do Phande e o seu Atenção. Ao menos, com o pai, aprende a ser pessoa. – Disse para si mesma.
O ano dessas conversas perdeu-se na memória. Sei que nem eu, nem o Phande andávamos ainda na escola. A contagem das coisas que sabíamos era só mesmo moxi, yadi, tatu, wana[5]. Est á v a mos ainda em Kitumbulu, fazenda do Sô Fernando, pai do nosso pai.
Atenção era um pastor alemão, exímio caçador. Um alemão agropecuário na região, entre os potentados de Kuteka e Thumba, ofertara o canídeo ao meu progenitor.
Atenção ia sozinho à caça e arrastava o animal até à casa. Quando não pudesse fazê-lo, parava e ladrava até que Sô António fosse ajudá-lo.
Certo dia, Atenção foi à caça e cruzou com uma onça. Atenção lutou valentemente. Voltou muito maltratado e dos ferimentos não resistiu. Fizemos-lhe um thambi[6] “de pessoa”. Foi a minha primeira experiência.
Depois o Sô António comprou o Tigre. Era preto, pêlos lisos. Chamávamoslhe “cão mulato”. O Tigre também caçava quando integrando caravana humana. Não era caçador independente como o Atenção, mas era melhor do que outros cães vadios da aldeia que só sabiam comer.
Quando o Tigre morreu, de velhice ou doença já não me lembro, eu contava uns seis anos e participei mais activamente no seu enterro. Não teve urna como o Atenção, mas foi envolto em cobertor e lançado em uma cova com um metro de profundidade. Phande e eu ficamos em grande comoção e nesse dia ninguém comeu.
Essas estórias repudiam o tratamento indigno que se vem assistindo aos que ainda são conhecidos como “melhores amigos do homem”, l ugar que vão, nas cidades, perdendo para o telemóvel.
Cães abandonados, aparentemente sem dono, alimentando- s e n o l i x o, sofrendo pedradas de “meninos também sem família”. Quando enfermos ou mortos por doença ou atropelamento, apodrecem nas estradas até à decomposição total.
Certa vez, uma avó, já tão farta de ver tanto cão morto nas estradas, gritou com toda a força que lhe restava no corpo.
- Quem não consegue cuidar cão que não compre/receba, mesmo que seja de oferta!
Acho que a vovó tinha razão. Quem decidir ter cão que faça como Sô António e seus dois filhos. Eles não deixavam o Atenção e o Tigre comer alimento cru e quase se faziam à mesa com os donos.
Dona Maria, hoje já velha, ainda se recorda e conta para os netinhos que “o Tigre e o Atenção foram cães com direitos humanos” porque, não podendo sentar-se à mesa com os donos, comiam à mesma hora que eles! _______
[1] Cão sem dono
[2] Doença respiratório (do Kimbundu)
[3] Cesto feito de junco ou fibra de palmeira para transporte de animais de pequeno porte ou carne limpa, depois de uma actividade de caça (do Kimbundu).
[4] Porco do mato, javali (do Kimbundu)
[5] Um, dois, três, quatro (do Kimbundu)
[6] Óbito (do Kimbundu)