“Por favor”, doutora...
Não sabemos qual foi o seu percurso de vida nem a experiência em que assenta a postura com que nos interpela na sua breve mensagem-vídeo, em que tropeçámos nas redes sociais há cerca de uma semana(https://tinyurl.com/3a39mrs9).
Pela sua voz e aparência terá nascido uns bons 20 anos depois da independência. E o teor da sua mensagem, revela o que temos a certeza que sentem muitos colegas seus e grande parte dos trabalhadores da Saúde deste nosso país.
Também não sabemos exactamente em que hospital público trabalha e a que faz referência na sua mensagem. Sabemos que é "médica geral", o que lhe dá uma visão de conjunto dessa instituição e lhe permite lidar com a generalidade dos pacientes, proporcionando-lhe uma clara percepção da condição social da população.
Sabe, doutora, nós pertencemos a uma geração anterior à sua, a que em 1975 adolescia a sonhar que profissão escolher, de forma a contribuir para o desenvolvimento do país. E, apesar de sermos de áreas diferentes, tocaram-nos profundamente as suas palavras. Da nossa geração saíram também médicos: somos testemunhos da frustração e da tristeza que habitam esses nossos velhos amigos e colegas que – como nós, nas nossas áreas – não se deixaram acomodar. Mas desconseguimos construir o país que se precisava e que merecíamos.
Como ficarmos indiferentes a que persistam essas graves carências a que se refere? (nas imensas "periferias" de Luanda e no interior generalizado do país...).
O que nos entristece, porém, é que essa persistente realidade de carências no domínio da saúde (por conseguinte, da alimentação) e nos domínios da educação e da habitaçãofaz até muitos dos angolanos pensar – erradamente – que as pessoas eram até mais bem cuidadas e respeitadas "no tempo do colono"...! E não conseguimos perceber que a governação do país continue – em vez de desenvolver uma rede descentralizada de serviços de saúde de proximidade – a insistir em grandes unidades hospitalares sem que se garanta a capacidade de gestão e de funcionamento, comprecária manutenção e com equipamentos e tecnologias quantas vezes inapropriados ou inoperáveis,sem os consumíveis, sem os medicamentos, sem a alimentação adequada aos pacientes e sem a formação e a adequada remuneração dos profissionais do sistema de saúde...
A sua mensagem, doutora, tem o condão – pela sua sobriedade e sinceridade (e também pelo que alguns chamariam, a sua “ingenuidade”) – de obrigar-nos a questionar: porque escrevemos?
Sabe?, começámos a escrever e publicar neste nosso jornal nacional em Abril do ano passado por causa da crise sanitária causada pelo vírus SARS-COV2. Chegámos a sugerir que o “medo sanitário”eo "aperto económico" que a pandemia ia progressivamente causando no mundo inteiro, e sobretudo nos países subdesenvolvidos como o nosso, pudesse ajudar a "começar de novo"... A reflectir sobre os erros cometidos desde pouco depois da Independência e que poderíamos orgulhamonospor começarmos colectivamente e responsavelmente, um outro caminho de construção do país que precisamos, incluindo um eficaz sistema nacional de saúde.
Confessamos que – em pleno terminar de 2021 ( faz precisamente dois anos que o maldito vírus começou a propagar-se) – receber “na cara” um apelo como o seu, nos devasta.
E não é que nos surpreenda: temos, ao longo dos textos, insistido sobre a vergonha (essa mesma de que a doutora fala) pelo estado de saúde da nação, tão mau e tão doloroso. A constatação é que não se tem tido como prioridade (nem de longe!) a saúde dos cidadãos, e há muito concluímos que as “lições” retiradas das visitas ao exterior não ajudam a inspirar outras práticas, a não ser as oportunidades que beneficiam quem as faz.
O seu "Por favor..." rasgou-nos o coração.
Só que não temos memória de um processo social, nalgum país, em que os ricosque-decidem e os poderosos (esses que como diz "sabemos muito bem quem são": os que não se fazem consultar nem tratar no seu hospital nem põem a estudar os filhos nas escolas públicas), cedam a um “por favor” desses, se enterneçam e se motivem a "fazer alguma coisa", como a doutora suplica, pelos pobres e os excluídos... voluntariamente.
A doutora diz que não vamos poder esperar que os que têm a responsabilidade pública de resolver os problemas façam algo e nós também achamos que tem razão. Uma razão confirmada pelo tempo e pela obstinada situação de não mudança, como a realidade demonstra. Uma não mudança traduzida por mortes evitáveis, e humilhações diárias.
Mas olhe, talvez possamos não desesperar: parece que os ricos e poderosos também sucumbem aos encantos da natureza. E, quem sabe, talvez o assobio cantado dos passarinhos do hospital que acompanharam a sua mensagem os atraia e os comova...
Pode ser que aceitem o seu convite "para vir visitar" o seu hospital e – se desmaiarem de repente – sejam tratados e se curem milagrosamente,recuperandoa humanidade e o patriotismo (porque sabe, doutora?, a maior parte deles nasceram pobres, não duvide, e na sua juventude – como a doutora – tiveram aspirações de justiça e de equidade).
Perguntando-nos se não vai ser mesmo preciso algo mais que o apelo à compreensão de quem nos governa (irão ter as médicas de daqui a 15 anos que ainda fazer apelos como o seu?), só temos mesmo a acrescentar:
Obrigado, doutora, pela sua mensagem e pela sua coragem e, por favor, não desista.