O falacioso discurso racializado de conveniência
Tanto o “pan-africanismo”, enquanto projecto político, como a “negritude”, enquanto movimento cultural, não nasceram em África, mas nos EUA. A visão da “raça”, como conceito norteador, surge a partir de uma personalidade da Igreja Protestante Americana, formada na Universidade de Cambridge e que, mais tarde, optou, em África, pela nacionalidade liberiana: Alexander Crummell. Segundo o filósofo e escritor anglo-ghanês Kwame Anthony Appiah, especializado em estudos culturais e literários, actualmente professor na Universidade de Princeton, na sua obra "Na casa de meu pai", “a ‘África’ de Crummell é a pátria da raça negra e o seu direito de agir dentro dela, falar por ela e arquitectar seu futuro decorria do facto dele também ser negro. Crummell foi um destacado lutador pela reabilitação civilizacional dos negros ao procurar demonstrar, com base em referências históricas, que o fenómeno da escravatura não é particular aos negros. Explicou as causas e as consequências do tráfico de escravos e colocouse ao lado da justificação teológica das qualidades do negro (negro fitness) de se reger pelas suas próprias leis e se aperfeiçoar. É, no entanto, com Edward Wilmot Blyden,que o discurso da “raça” e dos valores da civilização negro-africana atingiram um maior radicalismo, sobretudo, a partir de 1870. Blyden, também padre protestante, linguista clássico, teólogo, historiador, sociólogo e antilhano de nascimento, depois de uma curta passagem pelos EUA, tornou-se, tal como Crummell, liberiano por opção. Aceitou, inicialmente, o ponto de vista prevalecente na América; ou seja, “negro” é qualquer pessoa com uma dose de “sangue negro”, por mínima que seja [any person with a admixture of negro blood, no matter how small]. Assim sendo, este ponto de vista abrangia também os mestiços. Mas, após os conflitos entre negros e mestiços no Haiti e na Nigéria, em que Blyden esteve pessoalmente envolvido, bem como o facto dos mestiços nos EUA beneficiarem de um estatuto social superior ao dos negros, levou-o a colocar-se definitivamente numa posição “anti-mulatos” e estes passaram a ser por ele remetidos para um lugar junto das raças caucasóide ou mongolóide. Em 1878, depois de manifestar oficialmente esta sua opinião, não encontrou seguidores nem nos meios políticos americanos da época, nem nos da Libéria. Só anos mais tarde as referências negativas aos “mulatos” encontraram um ambiente propício, para voltarem a ser abordadas. O sociólogo angolano Víctor Kajibanga, em «Crise da Racionalidade Lusotropicalista e do “Paradigma” da Crioulidade. O caso da antropossociologia de Angola», numa comunicação por si apresentada, em 1999, na Sociedade de Geografia de Lisboa, considerou o discurso da “raça” como uma “epistemologia de pendor eurocentrista e paternalista”. Criticou as “teses absurdas e marginais” de Pinharanda Gomes, um dos grandes defensores da portugalidade, que, em finais dos anos 60, em «Fenomenologia da Cultura Portuguesa»afirmou que “a invenção do mestiço era o facto mais importante da colonização portuguesa;
De acordo com a actual Lei Constitucional de Angola, o primado da igualdade encontra-se expresso no seu artigo 22º: “Todos são iguais perante a Constituição e a lei” e “ninguém pode ser prejudicado, privilegiado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da sua ascendência, sexo, raça, etnia, cor, deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas, ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social ou profissão
o mestiço era a vida necessária ao aparecimento da nova cultura portuguesa; o mestiço seria a ponte de união geográfica de Portugal e o mundo por ele colonizado.” No que respeita à mestiçagem Kajibanga considera-a como “a essência da humanidade (entendida essa mestiçagem, não só, como o resultado do contacto entre africanos e europeus e outros, mas também, entre os próprios africanos entre si, portadores de distintas culturas).” Hoje, de acordo com a actual Lei Constitucional de Angola, o primado da igualdade encontrase expressa no seu artigo 22º: “Todos são iguais perante a Constituição e a lei” e “ninguém pode ser prejudicado, privilegiado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da sua ascendência, sexo, raça, etnia, cor, deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas, ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social ou profissão”(sic). Mas, voltando ao “pan-africanismo”, para além de Alexander Crummel e Edward Blyden, outros intelectuais negros americanos, tais como, George Padmore, Marcus Harvey, Booker Washington, Paul Lawrence Dunbar eWilliam Du Bois contribuíram, até dada altura, para o despertar da consciência política de intelectuais africanos. William Du Bois, considerado o pai do “pan-africanismo”, foi o primeiro negro americano a receber um doutoramento na Universidade de Harvard,em 1896. Em 1957, assistiu à Independência política do Ghana, para onde se mudou,quatro anos mais tarde, como membro do Partido Comunista. Em 1962, acabou por renunciar à cidadania americana. Todavia, todos estes negros intelectuais americanos conceberam a sua relação com África através de um conceito de “raça”, adquirido a partir de uma matriz euro-americana e passaram a utilizar um discurso invertido. No sentido oposto, Kwame Nkrumah, mais tarde presidente do Ghana, procurou educar-se em instituições negras dos EUA e passou a partilhar uma concepção norte-americana de “raça”, enquanto Leopold Sedar Senghor, mais tarde presidente do Senegal, acabou por interiorizar a visão europeia de “raça”. Quer o “pan-africanismo”, enquanto projecto político, quer a “negritude”, enquanto movimento cultural, partiam do pressuposto da solidariedade racial entre os negros, que, na prática, pelo historial de jogos de interesses entre europeus e líderes africanos e de sangrentos conflitos existentes entre os próprios africanos,verificou-se que a mesma é inexistente. Porém, como concluiu Appiah, as relações entre “raça” e pan-africanismo e “raça” e negritude, originalmente estabelecidas por intelectuais negros americanos, são incómodas para o continente africano. Isto porque, ao conceber-se os africanos em termos raciais, resulta que uma opinião negativa sobre África, não se torna fácil de distinguir de uma opinião negativa sobre os negros.