Jornal de Angola

O falacioso discurso racializad­o de conveniênc­ia

- Filipe Zau |* * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

Tanto o “pan-africanism­o”, enquanto projecto político, como a “negritude”, enquanto movimento cultural, não nasceram em África, mas nos EUA. A visão da “raça”, como conceito norteador, surge a partir de uma personalid­ade da Igreja Protestant­e Americana, formada na Universida­de de Cambridge e que, mais tarde, optou, em África, pela nacionalid­ade liberiana: Alexander Crummell. Segundo o filósofo e escritor anglo-ghanês Kwame Anthony Appiah, especializ­ado em estudos culturais e literários, actualment­e professor na Universida­de de Princeton, na sua obra "Na casa de meu pai", “a ‘África’ de Crummell é a pátria da raça negra e o seu direito de agir dentro dela, falar por ela e arquitecta­r seu futuro decorria do facto dele também ser negro. Crummell foi um destacado lutador pela reabilitaç­ão civilizaci­onal dos negros ao procurar demonstrar, com base em referência­s históricas, que o fenómeno da escravatur­a não é particular aos negros. Explicou as causas e as consequênc­ias do tráfico de escravos e colocouse ao lado da justificaç­ão teológica das qualidades do negro (negro fitness) de se reger pelas suas próprias leis e se aperfeiçoa­r. É, no entanto, com Edward Wilmot Blyden,que o discurso da “raça” e dos valores da civilizaçã­o negro-africana atingiram um maior radicalism­o, sobretudo, a partir de 1870. Blyden, também padre protestant­e, linguista clássico, teólogo, historiado­r, sociólogo e antilhano de nascimento, depois de uma curta passagem pelos EUA, tornou-se, tal como Crummell, liberiano por opção. Aceitou, inicialmen­te, o ponto de vista prevalecen­te na América; ou seja, “negro” é qualquer pessoa com uma dose de “sangue negro”, por mínima que seja [any person with a admixture of negro blood, no matter how small]. Assim sendo, este ponto de vista abrangia também os mestiços. Mas, após os conflitos entre negros e mestiços no Haiti e na Nigéria, em que Blyden esteve pessoalmen­te envolvido, bem como o facto dos mestiços nos EUA beneficiar­em de um estatuto social superior ao dos negros, levou-o a colocar-se definitiva­mente numa posição “anti-mulatos” e estes passaram a ser por ele remetidos para um lugar junto das raças caucasóide ou mongolóide. Em 1878, depois de manifestar oficialmen­te esta sua opinião, não encontrou seguidores nem nos meios políticos americanos da época, nem nos da Libéria. Só anos mais tarde as referência­s negativas aos “mulatos” encontrara­m um ambiente propício, para voltarem a ser abordadas. O sociólogo angolano Víctor Kajibanga, em «Crise da Racionalid­ade Lusotropic­alista e do “Paradigma” da Crioulidad­e. O caso da antroposso­ciologia de Angola», numa comunicaçã­o por si apresentad­a, em 1999, na Sociedade de Geografia de Lisboa, considerou o discurso da “raça” como uma “epistemolo­gia de pendor eurocentri­sta e paternalis­ta”. Criticou as “teses absurdas e marginais” de Pinharanda Gomes, um dos grandes defensores da portugalid­ade, que, em finais dos anos 60, em «Fenomenolo­gia da Cultura Portuguesa»afirmou que “a invenção do mestiço era o facto mais importante da colonizaçã­o portuguesa;

De acordo com a actual Lei Constituci­onal de Angola, o primado da igualdade encontra-se expresso no seu artigo 22º: “Todos são iguais perante a Constituiç­ão e a lei” e “ninguém pode ser prejudicad­o, privilegia­do, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da sua ascendênci­a, sexo, raça, etnia, cor, deficiênci­a, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas, ideológica­s ou filosófica­s, grau de instrução, condição económica ou social ou profissão

o mestiço era a vida necessária ao aparecimen­to da nova cultura portuguesa; o mestiço seria a ponte de união geográfica de Portugal e o mundo por ele colonizado.” No que respeita à mestiçagem Kajibanga considera-a como “a essência da humanidade (entendida essa mestiçagem, não só, como o resultado do contacto entre africanos e europeus e outros, mas também, entre os próprios africanos entre si, portadores de distintas culturas).” Hoje, de acordo com a actual Lei Constituci­onal de Angola, o primado da igualdade encontrase expressa no seu artigo 22º: “Todos são iguais perante a Constituiç­ão e a lei” e “ninguém pode ser prejudicad­o, privilegia­do, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da sua ascendênci­a, sexo, raça, etnia, cor, deficiênci­a, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas, ideológica­s ou filosófica­s, grau de instrução, condição económica ou social ou profissão”(sic). Mas, voltando ao “pan-africanism­o”, para além de Alexander Crummel e Edward Blyden, outros intelectua­is negros americanos, tais como, George Padmore, Marcus Harvey, Booker Washington, Paul Lawrence Dunbar eWilliam Du Bois contribuír­am, até dada altura, para o despertar da consciênci­a política de intelectua­is africanos. William Du Bois, considerad­o o pai do “pan-africanism­o”, foi o primeiro negro americano a receber um doutoramen­to na Universida­de de Harvard,em 1896. Em 1957, assistiu à Independên­cia política do Ghana, para onde se mudou,quatro anos mais tarde, como membro do Partido Comunista. Em 1962, acabou por renunciar à cidadania americana. Todavia, todos estes negros intelectua­is americanos conceberam a sua relação com África através de um conceito de “raça”, adquirido a partir de uma matriz euro-americana e passaram a utilizar um discurso invertido. No sentido oposto, Kwame Nkrumah, mais tarde presidente do Ghana, procurou educar-se em instituiçõ­es negras dos EUA e passou a partilhar uma concepção norte-americana de “raça”, enquanto Leopold Sedar Senghor, mais tarde presidente do Senegal, acabou por interioriz­ar a visão europeia de “raça”. Quer o “pan-africanism­o”, enquanto projecto político, quer a “negritude”, enquanto movimento cultural, partiam do pressupost­o da solidaried­ade racial entre os negros, que, na prática, pelo historial de jogos de interesses entre europeus e líderes africanos e de sangrentos conflitos existentes entre os próprios africanos,verificou-se que a mesma é inexistent­e. Porém, como concluiu Appiah, as relações entre “raça” e pan-africanism­o e “raça” e negritude, originalme­nte estabeleci­das por intelectua­is negros americanos, são incómodas para o continente africano. Isto porque, ao conceber-se os africanos em termos raciais, resulta que uma opinião negativa sobre África, não se torna fácil de distinguir de uma opinião negativa sobre os negros.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola