“Há muito a fazer para preservar o património arqueológico”
Há uma história de Angola que se conta a partir dos vestígios materiais soterrados. E há mais de 30 anos que o arqueólogo e antropólogo francês Manuel Gutierrez faz parte deste esforço, que conta com o apoio da Embaixada de França em Angola. Com escavaçõe
O senhor é um dos mais destacados especialistas em arqueologia angolana. Quando começou a interessar-se por esse campo específico?
A arqueologia é uma abertura ao passado, cujos vestígios muitas vezes são difíceis de detectar. Portanto, é necessária formação específica para ler os dados do passado. Esta formação ocorre em universidades que oferecem um curso longo. Este é o meu caso. Estudei arqueologia na Universidade de Paris 1 Panthéon Sorbonne e tive a sorte de ter professores muito bons (em particular J. Devisse e J. Chavaillon), que me transmitiram os seus conhecimentos e também a paixão pela arqueologia de África. Portanto, possuo um mestrado e um doutoramento em arqueologia. E tudo começa por aqui...
Mas está há décadas envolvido numa cooperação franco-angolana na área da Arqueologia. Fale-nos do balanço que se pode fazer desta parceria...
A cooperação franco-angolana permitiu-nos iniciar a nossa investigação em Angola há 30 anos. Durante a minha primeira estadia em Angola e enquanto trabalhava com arte rupestre, no sul do país, tive a oportunidade de me encontrar com o director do Museu Nacional de Arqueologia de Benguela (MNAB), Luís Pais Pinto. Ele era apaixonado pela arqueologia e sabia das limitações da sua equipa. Propôs-me fazer parte da sua equipa, como pesquisador associado, o que eu aceitei. Ele também pediu ajuda na formação dos técnicos. A implementação deste projecto contou, desde o início, com o apoio do Serviço de Cooperação e Acção Cultural da Embaixada de França em Angola.
Que componentes teve essa cooperação?
A primeira foi a investigação arqueológica in loco, nomeadamente, na província de Benguela, que foi acompanhada de formação teórica e prática em métodos de arqueologia. Depois, houve a formação em França. Temos recebido muitos membros do MNAB nas escolas (les chantiers-écoles) da nossa universidade (Pincevent e Etiolles, em particular) para cursos de formação de 30 dias. Seguiuse a formação de longa duração na Universidade de Paris 1. Formação que integra o mestrado, cujo sucesso abriu as portas para o registo no doutoramento. Supervisionei três alunos angolanos de doutoramento, que agora são doutorados pela nossa universidade. Todos estes projectos de formação foram assegurados pela Embaixada da França em Angola. Os resultados são, portanto, muito positivos e sem o apoio inabalável da Embaixada da França nada desse progresso teria ocorrido.
Além da formação, a cooperação previa igualmente trabalho de sensibilização para a preservação do património. Deu resultado?
A protecção do património arqueológico e, mais geralmente, do património nacional é uma tarefa de longo prazo. É necessário que haja vontade comum sobre uma visão ampla da importância dos vestígios a serem protegidos e valorizados. Parece-me que ainda há um caminho a percorrer...
O senhor dirigiu pesquisas na Baía Farta, local de uma vasta indústria lítica. Em que medida é que esses trabalhos já influenciam a reconstituição da história angolana?
As pesquisas realizadas na Baía Farta, e mais precisamente no conjunto arqueológico Dungo, ocorrem em sítios do Paleolítico antigo. São lugares onde as populações do passado deixaram vestígios, em particular pedras lascadas (material lítico) que mostram a acção do homem sobre essas pedras, para produzir objectos que chamamos de Choppers, Bifaces, Shards, Núcleos ...
A importância dessas pedras lascadas é que muitas vezes são os únicos vestígios da presença humana antiga num território. Devemos, portanto, estudá-los no contexto original, para compreender a sua história e o seu lugar no tempo, o que chamamos de contexto horizontal e estratigrafia. Estes dois aspectos são acessíveis graças a métodos de escavação rigorosos, adaptados aos locais e às épocas. Uma vez adquiridos esses dados, deve-se abordar a questão da idade dos vestígios, ou seja, a cronologia dos factos arqueológicos.
O que é complexo...
Sim, a abordagem cronológica é complexa, na medida em que é necessário encontrar os métodos de datação adequados para os vestígios descobertos. Os resultados actualmente disponíveis para nós são que o material lítico de Dungo IV, por exemplo (um dos sítios do conjunto arqueológico de Dungo) data, grosso modo, entre 1 e 2 milhões de anos atrás (Gutierrez e Benjamin, 2019, p. . 176). Estes novos dados indicam que a presença humana, ou pré-humana, em Angola data de há dois milhões de anos!
Podemos avaliar a importância do complexo arqueológico de Dungo e a necessidade urgente de preservá-lo com todas as medidas necessárias.
Mas as investigações pioneiras no campo remontam aos séculos XIX e XX, seguindo-se trabalhos de Louis S. B. Leake, Henri Breuil e John Desmond Clark. Que rupturas têm sido operadas, quer nos métodos, quer no envolvimento dos actuais arqueólogos?
As pesquisas e publicações de investigadores como Leaky, Janmart, Breuil, Clark, entre outros, são contribuições importantes na génese da disciplina em Angola. As abordagens metodológicas são fruto de uma época e do conhecimento disponível para esses pesquisadores. A colecção de objectos líticos encontrados na superfície, por exemplo, era a norma na época. O contexto horizontal e a posição estratigráfica do material arqueológico eram frequentemente esquecidos. A classificação das peças líticas, por exemplo, foi feita com base em critérios formais e com base no estado de desgaste dos objectos colectados “quanto mais um objecto é enrolado, mais velho ele é” (Gutierrez, 2001, p.19). No entanto, existem muito poucos objectos enrolados que podem ser muito antigos, porque são preservados da erosão devido ao seu soterramento.
E o que mudou?
As mudanças metodológicas feitas desde a época dos pioneiros até aos dias actuais são numerosas. Em primeiro lugar, o método de escavação e o espaço estudado. Estabelecemos grandes quadrados (100 m2) e praticamos escavação estratigráfica fina, levantamento sistemático e estudo de material arqueológico, datação laboratorial para obter cronologias fiáveis. Então, há uma mudança na percepção da pesquisa à medida que combinamos a formação de estudantes universitários com a prática de campo. Na Baía Farta, criamos um sítio de escola de escavação arqueológica para o treinamento teórico e prático de alunos estagiários da Universidade Katyavala Bwila (UKB) e membros do MNAB. O local de trabalhoescola funciona sob a direcção do MNAB, da UKB e com a nossa participação (Université Paris 1 Panthéon Sorbonne - Equipa de etnologia pré-histórica - UMR 7041 CNRS) (Karlin, 2019, p.131). Também aqui, o projecto de formação de campo contou com a participação do Serviço de Cooperação e Acção Cultural da Embaixada de França em Angola.