Testemunho pessoal dos dias da Dipanda
Dedico este texto à memória dos companheiros juristas que já partiram, Diógenes Boavida, Maria do Carmo Medina, Antero de Abreu, Adérito Correia e aos que persistem na caminhada, Aníbal Espírito Santo, Antonieta Coelho, Orlando Rodrigues, Paulette Lopes e
Tive a oportunidade, e o grande privilégio, de participar por dentro de alguns dos momentos marcantes dos dias que antecederam a Independência de Angola, no já distante 11 de Novembro de 1975.
Do turbilhão, a um tempo dramático e exaltante, dos factos e acontecimentos que então todos e cada um de nós viveu, nos diferentes palcos, proponho-me aqui relembrar e destacar, em breve excurso, os que se prendem com o nascimento da arquitectura jurídica do novo País, da sua Constituição, dos seus símbolos, da instituição formal do novo poder e de como tudo isso se concretizou nos históricos dias 10 e 11 de Novembro, virar historicamente acelerado da página colonial que se vinha escrevendo, com sangue e dor, há quinhentos anos.
Este particular ângulo de visão do meu envolvimento pessoal resulta, não tanto da minha condição de jurista – e como eram escassíssimos os juristas angolanos no País naqueles tempos, poucos mais do que os dedos de uma mão! -, mas sobretudo da circunstância de na altura eu ser o director do gabinete do Dr. Manuel Rui Monteiro, Ministro da Informação, designado pelo MPLA, do Governo de Transição. E este Ministério, tal como o Ministério da Justiça, funcionava no Palácio, onde estava instalado o Colégio Presidencial tripartido (MPLA, FNLA e UNITA) e o Alto-comissário português.
Daí, a proximidade estreita do acompanhamento do que se passava no “centro do vulcão” de um poder que se extinguia e da emergência de um novo poder.
Começando pela certidão de nascimento do novo País – a sua Constituição fundadora -, é necessário recordar que, na sequência do Acordo de Alvor, havia sido elaborada uma “Lei Fundamental”, bem como uma “Lei Eleitoral”, que foram publicadas no “Boletim Oficial”, em Junho de 1975.
Promulgadas pelo Alto Comissário, na sua feitura consensual sobre a responsabilidade dos três Movimentos que integravam o Governo de Transição, envolveram-se juristas por eles indicados, destacando-se a Dra Maria do Carmo Medina e o Dr. Antero de Abreu, pelo MPLA, o Dr. Onofre dos Santos, pela FNLA e os Drs. Fernandes Vieira e Fernando Fonseca Santos, pela UNITA.
Mas, rapidamente, esse projectado edifício jurídico havia de se tornar letra morta e irremediavelmente ultrapassado.
O conflito interno agudizou-se dramaticamente na capital (começando pelo que se chamou a “batalha de Luanda”, em 9 de Julho) e por todo o País.
As principais forças da FNLA e da UNITA saem de Luanda em meados de Julho; em 30 de Julho o então Alto Comissário General Silva Cardoso demite-se e é substituído pelo Almirante Leonel Cardoso; em 12 de Agosto, os Ministros do Governo de Transição da FNLA e da UNITA abandonam Luanda e os seus cargos e, finalmente, em 22 de Agosto, é publicado pelo Alto Comissário o Dec.-Lei nº 458/A-75, que procede à suspensão parcial do Acordo de Alvor, “ficando transitoriamente suspensa a vigência do Acordo no que diz respeito aos órgãos de governo de Angola”.
Porém, nem esta suspensão legal por parte da potência colonial administrante, nem pela postura e comportamento dos três Movimentos e de todo o Povo Angolano, alguma vez se pôs em causa o facto definitivamente adquirido de que a Independência haveria de sobrevir a 11 de Novembro desse ano.
Daí que, logo a partir de Setembro/Outubro, o MPLA (e certamente também os outros dois Movimentos) começou a trabalhar na preparação dos instrumentos legais fundadores da Independência que se avizinhava.
Tudo isto se processou aceleradamente, no meio da voragem das batalhas e vicissitudes do conflito armado que entretanto se generalizara (a invasão e ocupação ao norte pelas tropas do Zaíre e do ELP português e a invasão da parte sul do País, ocupação e progressão do exército sul-africano); das tentativas de solução bilateral entre os Movimentos (encontro entre Lopo do Nascimento e José Ndele, em Lisboa, em 25 de Agosto); diversas intervenções diplomáticas africanas, desde a visita a Angola de uma delegação da OUA, em 20 de Outubro, até à Cimeira da OUA, realizada in extremis em Kampala, em 2/4 de Novembro. Entretanto, as colónias irmãs ascendiam à sua independência: Moçambique, a 25 de Junho, Cabo Verde, a 5 de Julho; S.Tomé e Príncipe, a 12 de Julho. Em Angola, a par das sucessivas batalhas e ocupações no terreno, assistiase ao gigantesco êxodo humano da "ponte aérea”, em que, entre 17 de Julho e 31 de Outubro, abandonaram o País cerca de trezentas mil pessoas (oficialmente, 235.315 para Portugal, 30.000 para a África do Sul e 17.000 para o Brasil). Com esta dimensão, a paisagem humana modificava-se radicalmente, num curtíssimo espaço de tempo.
Na incerteza da realidade que mudava a cada instante, obrigando a quase uma “navegação à vista”, pelo lado do MPLA foi-se trabalhando na preparação daqueles instrumentos fundamentais, a saber, a Constituição e a Lei da Nacionalidade, o texto solene da Proclamação da Independência e e a confecção dos símbolos do novo Estado.
Essa tarefa foi obra de um núcleo muito reduzido de dirigentes e militantes e desenrolou-se, principalmente, num marco espacial centrado na Cidade Alta, no Palácio do Governo, onde funcionavam o Ministério da Informação e o Ministério da Justiça, e o adjacente Bairro do Saneamento, por detrás do Palácio, onde residiam os Ministros, nomeadamente Manuel Rui Monteiro, Carlos Rocha Dilowla, Saydi Mingas e Augusto Lopes Teixeira (alguns Ministros da Unita e da Fnla já tinham abandonado as suas casas vizinhas, saíndo de Luanda).
O “trabalho de casa” foi feito, literalmente, na casa do Manuel Rui, onde, pela noite adentro, encontravam-se ou apareciam juristas como a Dra Antonieta Coelho, o Dr. Aníbal Espírito Santo e o Dr. Orlando Rodrigues, dirigentes como Lúcio Lara, Lopo do Nascimento, Saydi Mingas e Henrique Santos Onambwe.
Bem próximo, solitariamente na sua casa, Dilowla esboçava o que viria a ser a parte económica da Constituição, concertando-se com Saydi Mingas. Nos últimos dias, também deu o seu sábio contributo o Dr. Óscar Monteiro, jurista moçambicano que, seu amigo pessoal e colega de Coimbra, estava alojado na residência do Manuel Rui.
Por outro lado, a Lei da Nacionalidade que, no essencial recolhia o acordado em Alvor e, mesmo antes, em Mombaça – a consagração do ius soli , ia sendo preparada no gabinete do Dr. Diógenes Boavida, já então Ministro da Justiça, com a colaboração principal do Dr. Antero de Abreu e da Dra Maria do Carmo Medina.
Naquelas longas e tensas noites, e também no mesmo local, trabalhava-se na feitura dos símbolos da futura República: o hino “Angola Avante”, em que à bela letra do Manuel Rui se juntava, estrofe a estrofe, a harmonia dos acordes do Rui Mingas; a bandeira e a insígnia, com as ideias e matrizes iniciais do Henrique Santos “Onambwe” e o traço esmerado do Marcos Almeida “Kito”, sob a supervisão do Helder Neto.
Como é evidente, todos estes projectos eram depois levados à aprovação da direcção do MPLA, designadamente do Presidente Agostinho Neto, que se encontrava as mais das vezes no chamado “Estado Maior”, no Morro da Luz, na Samba. E o “estafeta” era normalmente o Dr. Manuel Rui Monteiro. Já a sua execução material era feita na Direcção Geral de Informação do Ministério da Informação, no rés-do-chão do Palácio, então chefiada por Luís de Almeida, que viria a ser, mais tarde e por décadas, o decano dos Embaixadores angolanos.
Foi no seu gabinete que se ultimou também o texto da “Proclamação da Independência”, cuja matriz inicial foi da autoria de Carlos Rocha Dilowla, beneficiando dos contributos de Lopo do Nascimento, José Eduardo dos Santos e também, na versão “literária” final do Manuel Rui e de mim próprio. Aprovadas, por aclamação, pelo Comité Central do MPLA no próprio dia 10 de Novembro, a Lei Constitucional da República Popular de Angola e a Lei da Nacionalidade, ainda nesse mesmo dia houve que as dar à estampa na Imprensa Nacional, cujos tipógrafos estavam naturalmente a postos, de modo a que, no dia seguinte, fosse publicado o nº 1 do novo “Diário da República”.
O que efectivamente veio a acontecer (embora com tantas gralhas que, logo no dia 12, saía uma extensa corrigenda no nº 2…). Esse nº 1 do novo jornal oficial da República estampava os dois documentos fundadores do novo Estado, a sua certidão de nascimento: a Lei Constitucional, vertida em sucintos mas fundamentais sessenta artigos, e a Lei da Nacionalidade, em oito curtos artigos, definindo a nova cidadania angolana.
Aquela mesma emergência marcou a confecção material da bandeira e da insígnia e o primeiro ensaio de entoação do Hino, por um coro improvisado pelo Carlos Lamartine, na então Emissora Oficial de Angola, primeiro com Rui Mingas, Catila Mingas e o próprio Manuel Rui e depois com um grupo de jovens apressadamente encontrados para o efeito...
Ao meio dia do dia 10, o Alto Comissário Leonel Cardoso, num acto realizado no salão nobre do Palácio, para o qual convocara a imprensa, declarava solenemente que Portugal se retirava de Angola e “entregava a soberania ao Povo Angolano”.
Foi a solução, algo ficcional, que em Lisboa o Governo português, largamente dividido sobre a situação em Angola, encontrou para se recusar a reconhecer formalmente o novo Estado e o novo governo instituído na capital. Feita essa proclamação unilateral de uma independência difusamente sem destinatário, o Alto Comissário e o seu staff abandonaram o Palácio, dirigiram-se à Fortaleza, onde arrearam a “ultima bandeira portuguesa em solo angolano” e daí saíram para a base naval na Ilha de Luanda, onde embarcaram nas “ultimas caravelas”, os navios “Niassa” e “Uíge”, duas fragatas e uma corveta.
Por circunstâncias que não interessa agora revelar (fora incumbido de entregar a bandeira portuguesa arreada na base de Belas ao Tenente da Marinha portuguesa Soares Rodrigues), tive a oportunidade de assistir à retracção do último dispositivo militar português em terra, ao longo da Ilha, e recordo o quadro ímpar a que assisti: quando entrei na base, ainda havia na porta de armas fuzileiros portugueses; quando saí, uma escassa meia hora depois, todos tinham embarcado, a porta de armas estava escancarada e as crianças e o
Tive a oportunidade, e o grande privilégio, de participar por dentro de alguns dos momentos marcantes dos dias que antecederam a Independência de Angola