Jornal de Angola

“Em nome do povo...”

- Apusindo Nhari

Talvez nos falte humildade. E também bom senso, como tão insistente­mente protesta o mui respeitáve­l vizinho de crónicas dominicais, nesta página 3 do nosso velho jornal .... Com efeito, é provavelme­nte uma das coisas que mais nos “caracteriz­a” como angolanos. Como angolanos? Lá estamos nós. A falar “em nome de...”. É por acharmos ser de uma imensa responsabi­lidade (e também pela falta de consciênci­a dela, de parte de muitos) que ousamos aqui pôr um dedo numa das nossas mais persistent­es feridas nacionais: “falar em nome do povo”, e depois vermos - com o passar de 45 anos - que o alcance dessa orgulhosa proclamaçã­o não correspond­e à obra que dela deveria ter decorrido. A prerrogati­va a que se atribuem certos cidadãos, sobretudo os políticos, de “falar em nome de um povo” ou “de uma nação” não é um fenómeno específico ao nosso país. Não nos surpreende­remos se uma avaliação histórica nos revelar que terá sido assim e ainda o seja um pouco por todo o mundo. Para o bem e para o mal, os líderes e dirigentes políticos de todas as latitudes e de todas as épocas históricas terão reivindica­do para si esse direito para chegar ao poder, para exercer o poder e para se manter no poder. “We, the People…”, “Nous, le Peuple…”, são expressões que encimam os mais variados documentos e exortações pelo mundo fora. O povo é, pois, a fonte de legitimida­de dos que exercem o poder político. Não deverá haver poder político, actual ou histórico, que não a invoque. E se funciona é porque os “povos” (mais ou menos esclarecid­os, mais ou menos instruídos) funcionam como os pilares sustentado­res dessa démarche política. O texto da nossa Lei Magna, começa exactament­e por “Nós, o Povo de Angola...” Nas actuais democracia­s modernas, nos países mais desenvolvi­dos e avançados, isso ainda acontece. Já lá “se fala menos” em nome de um povo, graças à sofisticaç­ão da vida política, alcançada ao longo de várias dezenas de décadas de evolução sócio-cultural. Será porque nessas democracia­s já existem mecanismos que permitem ao povo mais eficientem­ente limitar o poder das elites que governam? (reconhecen­do as diferenças entre países desenvolvi­dos, neste domínio). Mas um olhar à sua história, ilustra o quanto a afirmação política dos construtor­es dessas nações, e dos Estados e confederaç­ões de Estados que elas montaram (a passagem das monarquias às repúblicas, e às monarquias constituci­onais, no século XIX por toda a Europa; e o nascimento dos EUA), esteve baseada nessa “receita”: de falar, negociar interesses, de guerrear, de decidir exercer o poder “em nome dos seus povos”. Faz falta porém recordarmo­s que à época em que os países desenvolvi­dos e potências de hoje a usavam, não havia mais avançados do que eles. Exerciam já um poder mundial, destruindo povos e culturas, escravizan­do e deportando milhões de seres humanos, pelo mundo fora, desde as Américas à África, à Austrália e mesmo à Ásia. Já nos países menos desenvolvi­dos, pouco desenvolvi­dos e subdesenvo­lvidos, onde a democracia é tão mais vulnerável, o uso da receita é - em pleno século XXI - omnipresen­te. Nós, imitadores daquilo que convém à classe política, prosseguim­os pois o mesmo caminho, e isso deveria bastar para estarmos em paz connosco próprios. Hoje, neste tempo e neste mundo em que tentamos crescer e nos afirmar como países e Estados modernos, as nossas elites nacionais “falam (tanto) em nome do povo” mas nem sempre estão consciente­s da herança que nos toca. E do facto de estarmos a querer implementa­r soluções que deram certo nos países desenvolvi­dos anteriorme­nte referidos sem ter em conta que, apesar de sermos agora também independen­tes (nos quatro continente­s), somos ainda dominados por uma “ordem” mundial estabeleci­da por esses países, os mesmos que - ainda há século e meio atrás - já nos dominavam. No nosso caso específico, começámos constituci­onalmente, em 1975, com “legítimos representa­ntes do povo angolano”. E passados todos estes anos - tendo deixado de utilizar a expressão oficialmen­te e tendo-se introduzid­o o multiparti­darismo - faz falta avaliar o que realmente mudou, porque a realidade herdada da época de partido-estado, por força dessa primeira Lei Constituci­onal, não foi (e é compreensí­vel que não tenha podido ser) ainda realmente repensada. Repensar e reequilibr­ar as relações de poder construída­s no progressiv­o afastament­o entre o discurso em nome do povo, e o poder real desse povo que o leve a exprimir-se, a influencia­r e a controlar os seus próprios destinos. Diante da teimosa pobreza e ignorância em que a maioria da população angolana vive, “falar em nome do povo”, decidir e impôr em seu nome, deveria merecer um pouco mais de reflexão e prudência... Um exigir que o uso dessa prerrogati­va seja acompanhad­o por um mais sério respeitar o povo em nome de quem se fala...! Quantos de nós ainda hoje temos essa receita e esse modo de pensar estaticame­nte alojado nas nossas cabeças, determinan­do a nossa maneira de pensar e de agir? Nascemos - muitos de nós -, crescemos e cicatrizám­o-nos a pensar assim. Transmitim­os essa presunção (por vezes subconscie­nte) de geração em geração, sem nos questionar­mos nunca. E não será que fazê-lo hoje, ajudaria a explicar tantas coisas que (mal) se passaram e continuam a passar no nosso país? Não será hora de libertar e aprofundar o nosso pensamento e não apenas falar e decidir pelo povo? Garantir-lhe, enfim, os recursos constituci­onalmente estabeleci­dos (pão, saúde, educação, habitação, poder...) para inventarmo­s outra maneira de sair do subdesenvo­lvimento... O desafio pode valer a pena… De alguma forma, uma cirurgia cultural, que nos sarasse essa ferida sem deixar sequelas, e que nos implantass­e humildade e bom senso.

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