Um (novo) Poder Popular?
Encorajar o enraizamento e construção de uma sociedade assente na real participação dos cidadãos é seguramente uma das mais importantes funções do Estado. Seja chamando-lhe poder popular ou autarquias! O adiamento das eleições autárquicas para um vago momento definido como: “quando as condições estiverem criadas” é, por isso, um tema que nos obriga a reflectir...
É certo que o surgimento da CoViD 19 trouxe um novo elemento, perturbador e ainda imprevisível, que recomenda cautela na implementação de actividades que envolvam campanhas, mesas de voto, novas assembleias, etc., aconselhando adiar quaisquer eleições. Mas não será que a crise económica, moral e política que se prolonga - e que foi agravada pela CoViD 19 - deveria tornar mais urgente a repartição da enorme tarefa que temos pela frente, em várias porções mais simples e, por isso, mais geríveis ? Isto para não falar da importância da palavra dada.
Seria importante sermos capazes de parar o contínuo adiamento da escolha, pelos cidadãos, dos governantes locais com quem interagem mais frequentemente. Na situação a que chegámos, conseguir que todos se envolvam, participando na discussão, na acção e na correcção do que acontece no meio que nos é próximo, parece mais realizável e benéfico - e menos fracturante - do que a mobilização à escala nacional, também ela necessária.
Sente-se a falta de mudanças no discurso e na cultura que estão intimamente ligadas ao cultivar do processo autárquico. A resistência a tais mudanças é talvez a razão central para os sucessivos adiamentos das nossas autarquias, sob os mais diversos pretextos.
Embora não defendamos que se faça o que quer que seja apenas para nos compararmos com outros países - sabendo que a única competição que interessa é aquela contra o nosso próprio atraso - é surpreendente não termos ainda conseguido iniciar algo que Moçambique já experimenta há duas décadas e CaboVerde, mais estável e desenvolvido, há quase três.
As mudanças de discurso e de cultura que referimos acima, exigem deixarmos de esperar que apareçam salvadores, líderes iluminados, entes acima de interesses e tentações (que existem sempre e apenas necessitam de ser controlados e contra-balançados). Por demasiadas gerações foi-nos incutida a ideia - consistentemente contrariada pela prática - de que há quem (líderes, elites) esteja desinteressadamente a cuidar de nós, das massas, do povo, da sociedade no seu geral, a “guiar-nos” por não estarmos à altura de defender o que poderá maximizar os ganhos comuns. Devemos reconhecer que neste jogo, tanto os “chefes” como os “subordinados” se têm alimentado mutuamente nos respectivos papéis. De um lado o que cuida, controla, ordena e supervisiona, e do outro os que aspiram, pedem (por vezes chorando), obedecem e agradecem (por vezes cantando e dançando).
Como nos iremos libertar destas relações que a todos afecta, atrofia, e que prejudicam a positiva evolução da nossa sociedade? Perder o medo e dar segurança a todos - especialmente aos chefes - ajudará à transição. Só pode ajudar.
Passarmos a um modo em que em cada recanto do território, por cada indivíduo que nele habita, se possa cultivar o seu potencial, organizar-se colectivamente para resolver os problemas e traçar perspectivas de desenvolvimento, não é utópico. Pelo contrário, poderia ser tomado como um imperativo moral, um objectivo pelo que vale a pena lutar.
A exclusão e as desigualdades têm um custo muito superior à inclusão e à participação de todos. Não seria, neste momento da vida do nosso país, o papel mais importante do Estado o de corrigir a tendência para o acelerar das disparidades entre aglomerados populacionais e entre indivíduos? Canalizar recursos financeiros, através do OGE, para os aproximar? Esbater as diferenças pela alocação de recursos não apenas proporcionalmente à dimensão da população, mas também discriminando positivamente os locais onde tudo tem sido, e continua a ser, mais difícil (os mais pobres)?
Uma distribuição justa de recursos financeiros é possível, mesmo num estado centralizado. E investir também é dar visibilidade e atenção às distintas realidades, reconhecendo as especificidades e orientando as intervenções para realizar o potencial de cada área e de cada um. Daí que a distribuição do poder, nas suas várias dimensões (permitindo que as distintas zonas e todos os indivíduos recebam o seu quinhão de reconhecimento, de respeito e de capacidade de influenciar as decisões que a todos interessem) seja fundamental.
Não deveria o processo autárquico ter precisamente esse enfoque? E evitar que se repliquem, também no nível local, as disputas partidárias (geralmente esvaziadas de ideologia)?Como iremos despartidarizar a luta pelo poder autárquico, e permitir que os cidadãos ganhem real controlo deixando de ser peões instrumentalizados em lutas que raramente são pelos seus interesses? E como envolver os cidadãos e as populações com escolaridade limitada e menos recursos materiais nos processos de decisão, para que o poder esteja equilibradamente e mais justamente em todos nós, nas diferentes componentes do nosso povo?
Cada um de nós, literato ou não - como cada parcela de território - encerra em si um imenso potencial que tanto pode ser estimulado e realizado, como pode ser atrofiado e esmagado. A natureza e as múltiplas construções sociais que a humanidade foi criando formam o meio onde cada um de nós pode desabrochar, mas também contorcer-se, definhar ou, na pior das hipóteses, “evoluir” como os monstros que tudo consomem e destroem ao seu redor.
Perguntamos pois se acções como as que acima apresentamos - equilibrando a distribuição do poder pelas pessoas e o território - não poderão colocarnos num caminho que leve a um desenvolvimento mais harmonioso, a uma Angola melhor?