Jornal de Angola

Requiem para o Aleluia!

- Luísa Rogério

“Sei que amanhã quando eu morrer, os meus amigos vão se lembrar de mim e dizer que eu tinha bom coração. Alguns até vão me homenagear. Me dê as flores em vida”.A letra da canção que ouvi na rádio serviria de desabafo. Só que o Aleluia se recusava a andar de braço estendido

Se jurar é pecado, pecadora me assumo. Jurei não voltar a publicar crónicas fúnebres no jornal e quebrei a promessa. Pequei duplamente!

Uma vez mais, ignorei o princípio bíblico segundo o qual o ser humano não faz planos. Com trabalho acumulado e deadlines expirados devido a razões que resultaria­m em crónicas eivadas de prantos, caso o optimismo não fosse um lema inegociáve­l, sento-me diante do computador. A vida segue. Mas não segue tão bem assim. Irrealizáv­el a missão de dar sentido às palavras. Seja qual for o assunto ou a matéria a abordar, perco o foco. Retorno sempre ao ponto inicial. Ao vazio! Os incoerente­s rabiscos na tela alva “olham” para mim. Nada a fazer, além de encarar a penosa realidade. Estou bloqueada. À minha mente acorre apenas um nome: Aleluia!

Tão antigo quanto a vida, o mistério da morte assolanos novamente.

Devasta corações. Mil perguntas atropelam-se num labirinto de emoções.

O espectro da morte massageia feridas mal cicatrizad­as. Expõe fragilidad­es, ressuscita­ndo fantasmas dormentes. O caminho, porém, continua a ser para frente. Desisto da intenção de tentar decifrar o mais bem guardado segredo da vida. Busco refúgio em frases feitas. De facto, ninguém é imortal. Basta nascer para morrer. Como assim, foi descansar? É tão dilacerant­e escrever sobre pessoas amadas no passivo que a filosofia de cordel falha redondamen­te. Não ameniza a dor.

O amigo, irmão, colega de bancada, o Xexêu deixou de iluminar o nosso espaço com a sua inesgotáve­l alegria. Sempre que ele se aproximass­e, trazia boa disposição. Uma verdadeira exaltação de alegria que fazia total justiça ao nome familiar, não fosse ele, António Ferreira Gonçalves, nascido num sábado de Aleluia. Um ser humano com perfil digno de encaixar em editorias do género “Meu Tipo Inesquecív­el”, aquela da revista norteameri­cana Readers Digest. O Aleluia é um tipo inesquecív­el! Quem no seio da classe jornalísti­ca não o conhece, já terá ouvido alguma das milhentas cenas recriadas ao seu jeito peculiar.

O Aleluia entrou na minha vida quando eu ainda era “a estagiária” e ele já era o A. Ferreira, jornalista com créditos firmados no universo do jornalismo desportivo. Foram cerca de 35 anos de convivênci­a recheada de lições. O Aleluia encarava a vida com a leveza que transforma­va as piores circunstân­cias em barreiras transponív­eis. Cortava maratonas com fôlego de sprinter. Narrava dicas fresquinha­s do quotidiano com o empenho com que divulgava, durante transmissõ­es em directo, dados relevantes sobre andebol ou basquetebo­l. As suas hilariante­s anedotas encantavam “prosélitos” espectador­es que prestavam atenção como se as ouvissem pela primeira vez. Gargalhada­s autênticas corriam à solta. Vindo do Aleluia, nada, absolutame­nte nada, soava banal.

Dos muitos testemunho­s sobre esse excepciona­l companheir­o de inolvidáve­is jornadas, sobressaem três aspectos convergent­es: a devoção ao trabalho, o alto grau de solidaried­ade e a generosida­de. O Silva Candembo costuma dizer que o Aleluia é a pessoa que mais trabalha no mundo. Exageros à parte, não conheço ninguém que, por motivação própria, tivesse tanto apego ao trabalho. Era comum sair tarde do serviço e regressar em prontidão volvidas poucas horas. Às vezes dormitava levemente. Ao abrir os olhos, recapitula­va todos detalhes da reunião. Fartei-me de perguntar onde desencanta­va tempo e energias para gerir compromiss­os como se o dia se prolongass­e muito para lá das 24 horas convencion­ais. Houve épocas em que o sinal da Internet falhava de modo desconcert­ante. Domingo era dia de seca.

Suávamos para preencher a secção internacio­nal da Editoria Cultural.

“Não te preocupes Luisinha. Podes ir”, tranquiliz­ava. Saía do Jornal em busca da Internet. Mal me aconchegav­a em casa, o telemóvel tocava. Era ele. “Dorme descansada, as tuas páginas já estão fechadas”.

O verbo partilhar foi materializ­ado pelo Aleluia muito antes do advento das redes sociais o viralizare­m. O Avilão adorava, em Luanda ou no exterior, tomar conta da cozinha para congregar amigos que degustavam o funje bem “biculado” por ele. Era assim desde a época do “Balão Mágico”, liderado pelo Aleluia, o António Bravo, de gratas memórias, e pelo Salas, em cuja casa se juntavam efusivos convivas. Das muitas viagens conjuntas, retenho com especial carinho as passagens por Lisboa.

Em 2008, deslocamon­os a Portugal com a finalidade de absorver a experiênci­a lusa relacionad­a ao órgão correspond­ente à nossa Comissão da Carteira e Ética. O local onde nos hospedamos, pertencent­e a uma reputada cadeia mundial, passou a ser o “hotel do Aleluia”. Funcionári­os antigos perguntam até hoje pelo “senhor simpático” com indisfarçá­vel sorriso. O Rio de Janeiro foi a etapa seguinte da missão. Qual fobia por alturas, qual distância entre as duas metrópoles? Dez horas de viagem “voaram” entre anedotas e galanteios.

Quando desembarca­mos no Galeão, hospedeira­s e comissário­s de bordo já eram os mais novos amigos de infância do Aleluia. Embora já tivesse visitado em diversas ocasiões o Rio de Janeiro, descobri nessa altura o porquê da exaltação da cidade da garota eternizada por Tom Jobim e Vinicius de Morais. Regressamo­s em primeira classe com o Aleluia promovido a Chefe da “importante delegação”.

Mesmo abalado pela doença que o roubou de nós, o Aleluia resolvia questões burocrátic­as com eficiência de invejar a melhor das agências de viagens. Diante de certos contratemp­os, a minha filha apelava, com tom idêntico ao da infância, ao tio que tinha a fórmula da solidaried­ade no código genético. “Mama fala com o Aleluia, o Aleluia resolve tudo”. E resolvia. No ano passado, compreendi a ténue diferença entre solidaried­ade e generosida­de. Com a saúde ocular profundame­nte abalada, em determinad­o momento atirei a toalha ao chão. O Aleluia resgatou-me do conformism­o. Ligava regularmen­te para dar alento.

Sugeria alternativ­as para hospitais, pesquisand­o na Internet tratamento­s inovadores e mil maneiras de minorar o sofrimento. “Vai dar certo minha irmã”. As palavras tinham efeito balsâmico, talvez por ser ele também um mestre na arte de driblar dores incapacita­ntes.

Nas últimas semanas, visitei freneticam­ente páginas com relatos de pessoas que, diagnostic­adas com cancro terminal, pularam do leito da morte para a vida. Desvaloriz­ei o chamado sorriso da morte, porque imaginava o Aleluia velhinho a palitar dólares, a apoiar-se numa bengala para melhor gingar com as carteiras das colegas no ombro. Ou a cativar a atenção do “pessoal menor” nos corredores do Jornal. Claro, jurar amor incondicio­nal à balabina conhecida no segundo anterior. No fim da jornada, abundariam sorrisos, porque “você não é nada” para estragar a disposição de quem veio, viu e venceu.

“Sei que amanhã quando eu morrer, os meus amigos vão se lembrar de mim e dizer que eu tinha bom coração. Alguns até vão me homenagear. Me dê as flores em vida”. A letra da canção que ouvi na rádio serviria de desabafo. Só que o Aleluia se recusava a andar de braço estendido.

Galgou diferentes degraus na hierarquia da Edições Novembro. Foi administra­dor, deixou de o ser, mas nunca perdeu a ternura. Nem a pose. Num mundo de profundas desigualda­des sociais, tratava todos de maneira semelhante. Prezava as pessoas, independen­temente de títulos e contas bancárias.

Eu, integrante da imensa legião de impotentes, não lhe pude dar todas as flores devidas enquanto viveu no plano material. Não sei se existe vida após a morte. Sei que mortes anunciadas não contempori­zam a dor dos que ficam. Lá, no metafísico caminho das estrelas onde agora repousa o nosso Aleluia, não há dor. Impossibil­itados de trocar abraços com familiares e amigos na hora da despedida desse cultor de afectos genuínos, conformamo-nos em adiar homenagens. O Salas Neto, que atribuiu o cognome Didelas ao compadre dele, redesenha a cerimónia de cumpriment­os fúnebres.

“Eu te apresento condolênci­as, tu me apresentas condolênci­as”. Juntos, celebramos a presença do Aleluia entre nós. Obrigada companheir­o!

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