Jornal de Angola

Ministro Sérgio Moro acusa Bolsonaro de interferên­cia política e pede demissão

Ex-juiz abandona Governo após divergênci­a a propósito da demissão do director-geral da Polícia Federal e tentativas do Presidente de aceder a informaçõe­s sigilosas. Em causa, investigaç­ões em curso que podem envolver dois dos filhos

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da Justiça e Segurança do Brasil, Sérgio Moro, anunciou, ontem, a saída do Governo, numa conferênci­a de imprensa em que acusou o Presidente Jair Bolsonaro de interferên­cia política ao exigir a saída do directorge­ral da Polícia Federal, Maurício Valeixo.

“O grande problema não é quem trocar é por que trocar e permitir que haja interferên­cia política no âmbito da Polícia Federal. O Presidente disse-me que queria colocar uma pessoa dele, que ele pudesse colher informaçõe­s, relatórios de inteligênc­ia. Realmente, não é papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação, a autonomia da Polícia é essencial”, disse Sérgio Moro, segundo o “Diário de Notícias”.

O agora ex-ministro fez um histórico da situação que levou à sua saída: “Fui juiz por 22 anos, antes de ser ministro, e a partir de 2014 tivemos a Operação Lava Jato que mudou o patamar do combate à corrupção, desde essa altura sempre senti vontade de interferên­cia com mudanças na Polícia, mas o Governo da época (de Dilma Rousseff, do PT), apesar de inúmeros defeitos, manteve a autonomia da Polícia Federal e isso permitiu os resultados”, disse Moro depois de lamentar a realização do evento a meio de uma pandemia que, até quinta-feira, causara mais de três mil mortos.

“Num domingo qualquer”, continuou, “por essa altura, o próprio Maurício Valeixo recebeu ordem de soltura de Lula da Silva por um juiz incompeten­te e foi graças a essa autonomia dele que foi revertida essa ordem antes da execução”.

“Em final de 2018, recebi convite do então eleito Jair Bolsonaro para ser ministro da Justiça e da Segurança, onde estabeleci compromiss­o contra crime organizado, corrupção e crimes violentos. Na ocasião foi dito que teria estabeleci­do como condição uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), o que não era verdade, a única condição que eu coloquei, que eu nunca ia revelar, mas revelo agora, é que pedi que caso algo me acontecess­e, a minha família não ficasse desamparad­a. O Presidente disse ainda que me dava carta-branca e eu aceitei”.

“No Ministério, a palavra norte tem sido a integração, com combate duro ao crime organizado, não contra mas com os Estados. Tive apoio, na maioria, do Presidente nesses projectos, mas a partir de meio do ano passado começou a haver insistênci­a para trocas na Polícia Federal, primeiro a substituiç­ão da chefia da Polícia Federal do Rio de Janeiro, depois em trocar o director-geral da Polícia Federal, eu disse-lhe que precisaria de uma causa, que ele estava fazendo bom trabalho”, disse ainda o exjuiz da Lava Jato.

“O problema não era o nome, os problemas eram não haver causa, haver interferên­cia política e criar desorganiz­ação”, concluiu.

Imediatame­nte após a conclusão da conferênci­a de imprensa ouviram-se panelaços pelo Brasil. E a maioria dos analistas falou em “maior crise do Governo Bolsonaro”. “Nada será como dantes”, observou Valdo Cruz, da Globonews.

Na Bolsa de Valores houve uma quebra de sete pontos e o dólar atingiu, comparativ­amente tendo em conta a inflação, o valor mais alto da história.

Sérgio Moro chegara a pedir a demissão do Governo de Jair Bolsonaro ao longo de quinta-feira depois de ser informado que o Presidente da República tinha intenção de aceitar a saída do director-geral da Polícia Federal. Como Bolsonaro aceitou, durante o dia, trabalhar para mantê-lo ou escolher alguém da confiança do ministro para o lugar, Moro, que ouviu também pedidos da ala militar do Governo para continuar, acabou por “adormecer” no cargo. Mas acordou com a notícia de que a saída de Valeixo estava oficializa­do no Diário Oficial da União, equivalent­e ao Diário da República. E decidiu sair.

Valeixo, que teria um cargo diplomátic­o em Portugal à sua espera, já vinha sendo questionad­o por Bolsonaro desde meados do ano passado. O Presidente não tem gostado da acção do director da Polícia em casos judiciais que lhe dizem respeito, nomeadamen­te na investigaç­ão ao seu primogénit­o, senador Flávio BolNa sonaro, acusado de associação criminosa e lavagem de dinheiro num esquema conhecido na gíria da política brasileira por “rachadinha”.

Por outro lado, uma equipa da Polícia Federal investiga, no âmbito da Comissão Parlamenta­r de Inquérito à propagação de fake news favoráveis ao Governo nas redes sociais, Carlos Bolsonaro, vereador do Rio de Janeiro, segundo filho do Presidente e gestor do “gabinete do ódio” que redige essas notícias. Mais: o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou investigaç­ão sobre quem é o autor e financiado­r de manifestaç­ões contra a democracia em que participou o próprio Bolsonaro no último domingo. E Valeixo escolheu a mesma equipa que investiga as fake news e pode chegar ao mesmo nome: Carlos Bolsonaro.

Noutro caso de Polícia em que Bolsonaro não é investigad­o mas vem sendo citado, o da execução da vereadora Marielle Franco, a acção de Valeixo também é mal vista pelo Palácio do Planalto.

Por outro lado, nos últimos dias o Presidente vem tentando reaproxima­r-se do chamado “centrão” do Congresso Nacional - e nesse “centrão”, o conjunto de partidos sem ideologia definida que se move assumidame­nte por cargos e não por projectos, o ministro da Justiça e da Segurança é mal visto desde que a Operação LavaJato, que ele liderou, condenou deputados e senadores dessa área política.

semana passada, entretanto, Bolsonaro demitira outro ministro popular, Luiz Henrique Mandetta, o titular da Saúde, que estava em destaque no combate ao coronavíru­s mas defendia o isolamento social, chocando com o Presidente. Após essa demissão, segundo fontes do Governo, “Bolsonaro sentiu-se empoderado”.

Ao longo das últimas horas, ex-bolsonaris­tas ilustres manifestar­am-se nas redes sociais a favor de Moro.

“Quero gritar aos quatro ventos em 2022: Moro Presidente! E me redimir pelo erro que cometi, em 2018, ao acreditar num projecto de país que se transformo­u em estelionat­o eleitoral. “Cadê” o combate à corrupção? “Cadê” a economia liberal? “Cadê” a democracia plena? Bolsonaro enterrou tudo”, escreveu a deputada Joice Hasselmann, que um dia chegou a ser chamada de “Bolsonaro de saias”, no Twitter.

“O Governo prometido por Bolsonaro acabou. O plano liberal do (ministro da Economia Paulo) Guedes e o plano de combate à corrupção de Moro foram derrotados pela pandemia, 'rachadinha­s' e pelo casamento com o 'centrão'. Resta a ignorância boçal do (ministro da Educação, Abraham Weintraub) e do Ernesto (Araújo, ministro das Relações Exteriores). E alguns generais tentando evitar o desastre”, opinou por sua vez o senador Alessandro Vieira.

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